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Leitura: uma forma de libertação

Projeto de extensão da Faculdade de Letras da UFRJ propõe o exercício da leitura como remição de pena para pessoas privadas de liberdade

Considerada uma das ferramentas mais eficientes para o desenvolvimento da criatividade e do pensamento crítico, além dos inúmeros benefícios comprovados para a saúde mental e cognitiva, a leitura também pode ser, para algumas pessoas, uma oportunidade de libertação, em seu sentido literal. Desde 2013, por recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o exercício da leitura é atividade importante no processo educativo de pessoas encarceradas, podendo reduzir a pena em até quatro dias para cada livro lido e prática socioeducativa realizada.

Desde 2021, o que já era uma recomendação passou a ser resolução em todo o país, estabelecendo procedimentos e diretrizes específicas. Nesse contexto, o projeto de extensão “LER: Leitura, Existência e Resistência”, da Faculdade de Letras (FL/UFRJ), trabalha desde o primeiro semestre de 2022 com ciclos de leitura e atividades literárias no presídio Evaristo de Moraes, em São Cristóvão, Zona Central do Rio.

Coordenado pelos professores João Camillo Penna e Paulo Roberto Tonani, o projeto é uma cooperação técnica entre a Pró-Reitoria de Extensão (PR-5/UFRJ) e a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap) do Rio de Janeiro. O projeto conta, ainda, com a parceria de docentes da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

Em entrevista ao Conexão UFRJ, Tonani contou que a proposta surgiu ainda em 2019, a partir da sugestão de duas estudantes que já atuavam em defesa dos direitos de mulheres presas na Associação Elas Existem – Mulheres Encarceradas.

“A ideia partiu da Stéphane e da Larissa, duas ex-alunas do professor João Camillo Penna. Na associação, elas começaram a refletir sobre a remição da pena pela leitura e identificaram que era necessário, pela resolução da Seap, a parceria com uma universidade para a viabilização de um projeto. Então elas entraram em contato com ele, que, logo em seguida, me convidou para pensarmos na proposta”, compartilhou Tonani.

Contudo, por conta da pandemia de covid-19, as visitas no presídio Evaristo de Moraes não puderam acontecer, mas a equipe seguiu com encontros remotos para discussão de leituras críticas e teóricas. Afinal, é por meio de textos como “O direito à literatura”, de Antonio Candido, que o grupo desenvolve atividades baseadas na defesa dos direitos humanos.

O professor Paulo Tonani conversa com os estudantes que ministram o projeto de extensão aos detentos | Foto: Reprodução/Instagram

Apesar do predomínio de estudantes de Letras, o LER também conta com a participação de graduandos de Biblioteconomia, Direito, História, Psicologia e Serviço Social. Na última Semana de Integração Acadêmica (Siac/UFRJ), as apresentações baseadas no projeto ganharam menção honrosa pelo segundo ano consecutivo.

A dinâmica de atuação do grupo é construída a partir de três visitas presenciais por ciclo de leitura, com intervalos quinzenais entre cada uma delas. Na primeira, a equipe apresenta a proposta e os livros a serem trabalhados, para que, na próxima visita, com as leituras já em andamento, os estudantes possam oferecer auxílio e propor discussões acerca dos temas abordados nas obras. Clássicos como Crime e castigo, de Fiódor Dostoiévski, e contemporâneos como Prisioneiras, de Dráuzio Varela, marcam presença na lista de leituras disponibilizada. 

Por fim, no último encontro do ciclo, os detentos desenvolvem uma resenha ou um relatório do livro escolhido, que são avaliados pelos estudantes do projeto. Caso a produção alcance uma nota mínima (seis pontos), eles poderão ter até quatro dias remidos de suas penas.

“Ao pensarmos a realização de uma atividade em um espaço prisional, nós não estamos só discutindo uma metodologia de roda de leitura e de ensino de literatura. Estamos discutindo uma questão muito mais ampla, estamos pensando em encarceramento em massa, na seletividade do sistema prisional e judiciário, nas interseções entre raça, gênero e classe, e, sobretudo, no próprio conceito do sistema punitivo”, relatou Tonani.

Leitura como remição ainda é exceção

Apesar de iniciativas como o LER atuarem em diferentes estados do país, apenas 1% das pessoas privadas de liberdade utiliza a leitura como remição de pena. De acordo com dados do 17º Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de encarcerados mais que triplicou em 20 anos e ultrapassou a marca de 800 mil pessoas, o maior registro da história do país. Desse total, mais da metade  é analfabeta, semialfabetizada ou com ensino fundamental incompleto.

Contudo, Tonani reforça que o apoio à prática da leitura e de outras atividades socioculturais nesses espaços é um esforço necessário de toda a sociedade civil. Atualmente, a convite da deputada estadual Renata Souza (Psol-RJ), a equipe do LER foi convidada para colaborar na redação de um projeto de lei para remição da pena pela leitura. O projeto está em tramitação e aguarda ser analisado pela Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (CCJ/Alerj).

*Este texto é resultado das atividades do projeto de extensão “Laboratório Conexão UFRJ: Jornalismo, Ciências e Cidadania” e teve a supervisão do jornalista Victor França.