“Boa tarde a todas, todos e todes.” Frases como essa, que incluem em sua construção expressões de gênero neutro, começaram a se fortalecer a partir de grupos específicos, mas têm se tornado cada vez mais comuns, inclusive em espaços institucionais. Por exemplo, desde o início do novo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, alguns representantes do seu governo têm utilizado expressões similares, que objetivam ser mais inclusivas com a população LGBTQIAP+, mas não só.
A língua portuguesa, assim como outras línguas latinas, é entendida por estudiosos e pesquisadores como binária, já que apresenta basicamente dois gêneros que contemplem substantivos, artigos e adjetivos. As palavras bonito e bonita, por exemplo, demarcam explicitamente a definição de masculino e feminino. Não é o mesmo caso do inglês, no qual a tradução da mesma palavra, beautiful, não tem demarcação de gênero. Em alemão, é possível inclusive encontrar um artigo de gênero neutro: das.
Em paralelo a esse pensamento, podemos então trazer o conceito de não binariedade, que está relacionado a pessoas que não se identificam com o gênero feminino, tampouco com o masculino. Pessoas não binárias são aquelas que não se satisfazem em ser chamadas de ela ou ele. Consequentemente, também não ficam confortáveis em ser chamadas de bonita ou bonito. A linguagem neutra surgiu, então, como uma possibilidade de diminuir o desconforto, aumentar a inclusão desses grupos e acolhê-los. No dia 14 de julho, celebra-se o Dia Internacional de Pessoas Não Binárias.
Como funciona
Mas como funciona a linguagem neutra? Quando o movimento começou a se fortalecer no país, uma das maneiras para buscar a comunicação mais neutra era a substituição das letras a e o, marcadoras de gênero, pela letra x ou pelo símbolo @. No entanto, com o passar do tempo, foi entendido que tal formato mais atrapalhava do que ajudava no processo de inclusão, já que não era acessível a pessoas com deficiência física ou mental.
Atualmente, a forma mais simples de utilizar a linguagem neutra é o uso do e no final de palavras que possuem flexão de gênero. No caso da que estamos usando aqui, falaríamos bonite, por exemplo. Dessa forma, estaríamos incluindo em uma mesma palavra pessoas que se identificam com o gênero feminino, masculino e com a não binariedade. No entanto, há outras possibilidades além do uso da letra e. Substituir palavras binárias por aquelas com o mesmo significado e neutras é outra maneira, como é o caso de usar criança em vez de menino, gente em vez de todos, feliz em vez de animado. Também existe a proposta de uso do pronome neutro elu e suas variações: nelu, delu, aquelu etc.
Todas essas informações foram colhidas a partir de pesquisa na internet. Conseguimos encontrar um manual desenvolvido por estudantes da Universidade de Brasília (UnB) em 2022 e outro por estudantes da Frente Trans Unileira, coletivo da Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Ainda não é possível, porém, ter como referência algum tipo de legislação ou manual de uma instituição pública, dado que esses materiais não existem. Ao contrário, o que existe é a tentativa de criar projetos de lei que busquem proibir o uso dessa linguagem em espaços públicos.
Em fevereiro deste ano, por exemplo, o Supremo Tribunal Federal (STF) definiu como inconstitucional um projeto de lei do estado de Rondônia que proíbe a linguagem neutra em instituições de ensino e editais de concursos públicos por entender que a proposta invade a competência da União, mais especificamente do Ministério da Educação (MEC) de legislar sobre diretrizes e normas ligadas à Educação. Contudo, pesquisa realizada por mestrando da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) dá conta da existência de vários outros projetos ou até mesmo leis aprovadas nesse mesmo sentido proibitivo, apesar da inconstitucionalidade. O aumento dos ataques à linguagem inclusiva/neutra aconteceu principalmente durante o mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Forma de inclusão
Apesar de ser polêmica e dividir opiniões, a linguagem neutra não chega com o objetivo de ser um modelo imposto, como indicam os contrários a ela. Na verdade, pretende-se que seja apenas mais uma forma de se comunicar de forma inclusiva. Por esse motivo, os grupos de pessoas trans e não binárias não buscam que isso seja implementado em lei. É o que explica o professor Rodrigo Borba, da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro: “A linguagem neutra não se propõe a ser universal nem mesmo a norma culta, porque perderia o caráter de contestação. O que se tem hoje não é um processo de subtração, mas de acréscimo. Ou seja, será usado em determinados contextos, e não em outros”.
Borba defende ainda que grupos oprimidos buscam formas de reverter suas opressões por meio da língua, como acontece com o movimento negro, que questiona o uso de palavras racistas, como mulata e denegrir; e o movimento feminista, que critica o uso de palavras no masculino como a definição do padrão. Também por isso, Jaqueline de Jesus, professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), explica que prefere usar a expressão “linguagem inclusiva” em vez de “neutra” porque não é possível chegar realmente à neutralidade.
“Essa questão é um dilema em si porque não tem como afirmar que a linguagem é neutra por estar dentro de uma cultura. Quando se fala ‘linguagem neutra’, é uma posição crítica. Muitas vezes, no português, somos obrigadas a ‘generificar’ objetos e pessoas”, defende Jaqueline.
Os dois pesquisadores ressaltam a diferença entre “nome social” e “linguagem neutra”, e suas legislações. Enquanto o primeiro é reconhecido como direito de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública desde o Decreto nº 8.727, de 28 de abril de 2016, a linguagem é entendida por eles como algo que não pode ser regulamentado, nem para obrigar seu uso, nem impedir.
“Nome social é uma política de respeito. Não deveria ser necessário, mas, como as pessoas queriam, foi feito. Mas não tem sentido regular a linguagem neutra. Ninguém tem a obrigação de usá-la. Usar a linguagem não binária seria útil. O problema não é legislar a linguagem neutra, e sim tentar impedi-la. É bizarro por definição. Você não tem como impedir alguém de usar a linguagem que a pessoa quer”, critica Jaqueline.
Para Borba, a implementação dessa comunicação em espaços institucionais deve partir primeiro dos grupos que estão demandando. “Se em sala de aula um alune demandar isso e o professor não fizer, elu vai até a Ouvidoria. Em empresas, pessoas não bináries têm sido contratades para fazer manuais sobre essa linguagem. Talvez a mudança venha não de quem está em posição de poder, mas de quem está na rua, nas salas”, conclui.