“Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo”. Assim podemos ler no livro mais famoso de Carolina Maria de Jesus, escritora e doutora honoris causa in memoriam pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Em seu livro Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, escrito em 1960, ela usa a literatura para contar a sua história enquanto mãe, negra periférica e catadora de papel.
É a escritora quem dá nome ao Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023, lançado neste ano pelo Ministério da Cultura (Minc) e que tem como objetivo conceder R$ 2 milhões a 40 autoras por suas obras inéditas. Dentre elas, pelo menos oito deverão ser negras, em virtude do 20% de vagas reservadas para o grupo. Até o último dia de inscrições, foram mais de 2,6 mil trabalhos enviados. Destes, cerca de 500 foram na categoria contos, 200 crônicas, 600 romances, 14 histórias em quadrinhos e mais de mil poesias.
Em paralelo a esse movimento, que repassará, no mínimo, o valor de R$ 400 mil a autoras negras, a escritora contemporânea e ex-aluna da UFRJ Conceição Evaristo inaugurou no dia 20/7, no Rio de Janeiro, a Casa Escrevivência. O espaço, localizado no Largo da Prainha, na região portuária do Rio, abriga a própria biblioteca e produções da escritora mineira, e tem como objetivo receber escolas públicas, professores, pesquisadores, artistas e pessoas interessadas em ações culturais voltadas para o coletivo.
A casa leva em seu nome o conceito criado por Conceição. Escrevivência é a junção das palavras escrever e vivência e, segundo a autora, é a escrita da coletividade. É assim, caminhando pelas palavras, que ela e muitas outras escritoras negras conseguem passar por uma vida recheada pelas interseções do preconceito – sendo mulheres e negras –, mas também pela luta de transformar.
Ao longo de 126 anos de existência, a Academia Brasileira de Letras (ABL) nunca teve uma mulher negra entre seus membros. Em 2018, campanha massiva na internet angariou mais de 20 mil assinaturas solicitando a presença de Conceição na Academia. No entanto, a escritora recebeu apenas um voto dos 35 totais. Neste 25/7, em que se celebram o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e também o Dia do Escritor, o Conexão UFRJ traz uma reflexão sobre o lugar dessas escritoras negras. Podem elas escrever?
Contando histórias
Para isso, decidimos contar a história de Ana Lúcia Nunes de Sousa, jornalista e docente do Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde da UFRJ. Com uma trajetória inspiradora caso fôssemos falar de superação, a pesquisadora tem um currículo que reúne especializações e passagens por importantes programas de pós-graduação em universidades brasileiras e internacionais, como Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade de Buenos Aires e Universidade Autônoma de Barcelona.
Saída de uma cidade chamada Uruaçu, no interior de Goiás, a professora enfrentou muitos desafios e, ainda assim, sente dificuldade em se assumir enquanto escritora, apesar de estar lançando neste ano seu primeiro livro infantil pela editora Kitembo: Luanda no Mundo da Ciência. Na história, Luanda é uma criança negra que precisa escrever uma redação sobre “o que ela gostaria de ser quando crescer”. Sem saber o que falar, ela aprende com uma prima mais velha todas as suas possibilidades, conhecendo cientistas pretinhas como ela em diversas áreas do conhecimento.
A obra é um livro paradidático resultado das ações dos projetos de extensão Mulheres Negras Fazendo Ciência, do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet/RJ Maria da Graça), e As Incríveis Cientistas Negras: Educação, Divulgação e Popularização da Ciência, da UFRJ. A partir dele, o leitor pode conhecer, de forma lúdica, a história de cientistas negras do Rio de Janeiro e é essa uma das motivações principais de Ana Lúcia para escrever, principalmente para crianças.
Com previsão de lançamento para o dia 7/9, na Bienal do Rio, Luanda no Mundo da Ciência será entregue em escolas dos bairros de Praça Seca, Rio Comprido, Maria da Graça e na cidade de Seropédica, espaços onde são desenvolvidos os projetos de extensão a partir dos quais o livro surgiu. As iniciativas contam com auxílio financeiro do British Council e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
Escrever x silenciar
Apesar da trajetória na área acadêmica, esse é o primeiro livro que a escritora assina sozinha, realizando um sonho que sempre teve de ser escritora. “Foi um trabalho que fiquei completamente apaixonada. Me sinto muito feliz e realizada por ser infantil e por retratar pessoas que não seriam personagens de livros vistos neste lugar. Poderiam ser personagens, mas na literatura mais tradicional seriam subalternizadas, não seriam colocadas nesse lugar quase de heroínas”, conta a jornalista.
Mãe de duas crianças, Kwame (3 anos e 9 meses) e Amina (1 ano e 8 meses), Ana Lúcia viu crescer a sua vontade de escrever para esse público após a maternidade. Agora, ela já vislumbra para as próximas obras contar a história das personalidades que inspiram os nomes dos filhos. Kwame Nkrumah foi o primeiro presidente de Gana após a independência do país e um dos fundadores do Pan-Africanismo; enquanto Amina era o nome da rainha guerreira do povo Hausa, na região onde hoje é a Nigéria.
“Além dessas, tenho muitas outras histórias que podem vir. A gente fica pensando que há poucas cientistas, mas a gente tem que visibilizá-las. As mulheres negras têm muito pra falar, mas a gente precisa que a outra metade do mundo se silencie um pouco e passe a valorizar o silêncio. São vozes que merecem atenção e reflexão. Esperamos chegar lá!”, conclui a escritora.