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Existe liberdade de imprensa sem vozes dissonantes?

No Dia Nacional da Liberdade de Imprensa, entenda a importância do jornalismo contra-hegemônico na representação da realidade brasileira

Quando pensamos na imprensa, muitas vezes o que vem às nossas cabeças é a imagem dos jornais tradicionais. Conhecidos pela maioria da população como única maneira de obter informações, eles dominam o mercado da comunicação, que ainda hoje no Brasil é formado pelos grandes conglomerados de mídia, causando concentração. Diante dessa situação, o jornalismo tradicional consegue refletir toda a complexidade das realidades brasileiras? 

A mídia hegemônica, ou tradicional, é composta pelos grandes grupos, que geralmente têm seus interesses definidos por questões financeiras, em que a lógica de produção é definida pelo que vende mais. Isso gera certo impedimento em abordar temas sociais com complexidade e pluralidade de visões. Para Zilda Martins, pesquisadora do Laboratório de Estudos em Comunicação Comunitária da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ), embora o jornalismo hegemônico retrate problemas sociais da população, na verdade, ele “não tem interesse social: parece ter, mas a preocupação é efetivamente com o capital”.

Apresentando uma alternativa ao discurso produzido pelos grandes veículos, está a chamada mídia contra-hegemônica. Ela busca mudar o olhar, ampliar o debate a respeito dos assuntos que muitas vezes são negligenciados pelos grandes veículos, como informações locais e sobre públicos historicamente marginalizados. Dentre os vários segmentos da comunicação contra-hegemônica, está o jornalismo comunitário, que dá importância para as questões locais e retrata as notícias a partir da visão e do interesse da própria comunidade. Para Zilda, isso é “efetivamente uma liberdade de imprensa, porque se trata de um jogo democrático em que as demandas locais são ouvidas e atendidas pelos comunicadores populares”.

Representação social

Um relatório do Instituto Reuters, News for the Powerful and Privileged, divulgado em abril deste ano, indica que a população brasileira não se sente ouvida nem bem representada pela mídia hegemônica. A pesquisa  analisou a confiança das pessoas nas empresas midiáticas a partir de grupos minoritários em diversos países. No Brasil, o documento destacou que a cobertura jornalística é considerada “tendenciosa, sensacionalista ou depreciativa” pelos participantes da pesquisa, que eram  pretos e pardos de São Paulo e da Bahia. A maneira como a população  negra, maioria dos brasileiros, é retratada nos veículos tradicionais geralmente reforça estereótipos construídos historicamente.

Sem representatividade e espaço na mídia tradicional,  os comunicadores contra-hegemônicos encontram terreno fértil para a produção de notícias locais em seus próprios veículos. Parceiro do Conexão UFRJ na extensão universitária, o Maré de Notícias é um jornal comunitário fundado em 2009 com o intuito de informar sobre a comunidade, composta por 16 favelas, e mobilizar os 140 mil mareenses. No último mês, 50 mil exemplares do jornal impresso foram distribuídos na região. É possível ler as notícias também em versão on-line no site. 

Jornais são entregues à população da Maré | Foto: Maré de Notícias (Reprodução)

Com a produção de seus textos, os jornalistas comunitários têm a oportunidade de construir conteúdos a partir dos próprios pontos de vista, desfazendo-se dos preconceitos enraizados e perpetuados pela grande mídia, mobilizando as pessoas e fomentando a criticidade. Para Daniele Moura, coordenadora do núcleo de formação e editora do Maré de Notícias, a equipe jornalística consegue romper com a imagem criada pelos sistemas dominantes: “A gente rompe essa estrutura denunciando violação dos direitos humanos,  visibilizando a potência da favela, disputando uma narrativa que possa, de fato, falar sobre a favela sob uma ótica de quem está nela, e não de quem vê de fora. A proposta  é mostrar que a favela é o berço da criatividade,  porque ela propõe algo o tempo inteiro. Ela propõe tecnologia social o tempo inteiro”.

Um dos pontos de dificuldade dos veículos da comunicação contra-hegemônica é conseguir sobreviver e pagar seus custos. Para isso, eles fazem o que podem: muitos realizam campanhas de arrecadação e recorrem a editais diversos. “São editais de todos os tipos possíveis: desde a produção de criação de um produto inovador digital, um  app ou até criar  tecnologia de site. A gente faz tudo”, explica Daniele. 

A sociedade brasileira, tão diversa e com tantas diferenças sociais, raciais e de gênero, não consegue ser retratada apenas por meio da grande mídia, que muitas vezes não demonstra nos discursos essas diferenças, principalmente de maneira respeitosa e digna. Por isso, para os produtores da informação contra-hegemônica, é primordial que existam veículos preocupados e aliados a essa forma de fazer comunicação.  A situação vem mudando, inclusive com a mídia contra-hegemônica pautando a grande mídia. É a partir dessas diferentes visões e discursos que haverá a possibilidade de uma imprensa efetivamente livre.