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É preciso regulamentar as plataformas?

Laboratório da UFRJ elabora uma série de relatórios sobre anúncios na internet e defende maior transparência por parte das plataformas digitais

Os brasileiros são os terceiros maiores usuários de redes sociais no mundo, estando atrás apenas dos indianos e dos indonésios. Segundo uma pesquisa da Comscore, empresa de análise de dados de comportamento na internet, passamos 356 bilhões de minutos nas redes do início de 2020 até o final de 2021. Não é à toa que o território brasileiro desperta o interesse das grandes plataformas digitais, como o Google e a Meta. Ao contrário de outros países, o Brasil não tem uma regulamentação específica para a atuação destas empresas no ambiente digital. Esse cenário, no entanto, pode gerar obstáculos à segurança e à privacidade dos usuários e até mesmo à estabilidade democrática, de acordo com estudos da UFRJ. 

O Laboratório de Internet e Mídias Sociais (Netlab) da UFRJ, em parceria com a organização internacional Global Witness, realizou uma série de estudos voltada para o monitoramento de anúncios na internet e a forma como estão sendo veiculados. Durante mais de um ano de pesquisas, a equipe concluiu que a falta de transparência e fiscalização adequada nestes impulsionamentos leva à divulgação em massa de anúncios golpistas e falsos no meio digital, principalmente no grupo Meta, o foco de pesquisa dos grupos.

Segundo Carlos Eduardo Barros, coordenador de projetos e pesquisador assistente do Laboratório, a questão central está na mediação dos conteúdos, que é realizada pelos próprios algoritmos. Apesar de existir uma curadoria efetuada por especialistas, ele explica que, além de o volume de anúncios ser muito extenso, o que dificulta a filtragem, podem existir interesses financeiros não identificados, já que as plataformas recebem uma remuneração dos anunciantes. 

Além disso, não são públicos dados como quantidade e perfil de pessoas alcançadas pelo anúncio ou pagamentos realizados por cada anunciante. “Para quem trabalha nesse mercado, a transparência é fundamental. Isso é uma pauta civilizatória. É sobre termos um modelo de negócio que seja minimamente auditável, porque, para decidirmos se ele é justo, precisamos primeiro saber o que acontece lá dentro”, diz o pesquisador.

Estudos de acompanhamento prolongado 

Em 2022, o Netlab divulgou os relatórios feitos em parceria com a Global Witness, denunciando os anúncios que atacam a democracia nas redes. A organização internacional realizava os testes enviando anúncios antidemocráticos ao Facebook para constatar se seriam permitidos ou não pela plataforma da Meta. Enquanto isso, o Netlab ficou responsável pela observação e análise daqueles anúncios que foram, de fato, publicados por terceiros na Meta. 

Nesse levantamento, foi identificada a veiculação de ao menos 185 anúncios de caráter golpista, como ameaças à integridade das urnas eletrônicas e incitações de golpe após a eleição de Lula. Esses tipos de publicação são proibidos nas redes da Meta, porque vão  contra os padrões da empresa sobre violência e incitamento. Além disso, ao menos 151 desses anúncios não foram classificados adequadamente  pela Meta. O estudo classifica como “insuficientes” os esforços declarados pela empresa para a remoção de conteúdo antidemocrático e ataques às instituições e ao processo eleitoral.

Em março de 2023, o Comitê de Supervisão da Meta, chamado Oversight Board, divulgou a escolha de um caso brasileiro para apreciação: um vídeo postado em 3 de janeiro de 2023 que convocava as pessoas para “sitiar” o Congresso Nacional após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Nesse vídeo, aparecem imagens da Praça dos Três Poderes em Brasília e frases como: “Venha para Brasília! Vamos sitiar os três poderes!”. O conteúdo foi reproduzido mais de 18 mil vezes. Sete denúncias no Facebook foram registradas, mas os cinco revisores humanos da plataforma que avaliaram o conteúdo argumentaram que não violava as políticas da empresa e mantiveram o vídeo. Após um dos usuários recorrer da decisão e acionar o Comitê de Supervisão, a Meta admitiu o erro de ter mantido o conteúdo na rede. Segundo o Oversight Board, o caso foi selecionado para analisar como a empresa modera conteúdos relativos à eleição e como aplica o seu Protocolo de Política de Crise. 

Em abril deste ano, o Netlab divulgou outro relatório que demonstra um impulsionamento de anúncios falsos voltados para golpes financeiros na internet que conseguem alcançar potenciais vítimas a partir dos dados das plataformas. O estudo identificou dez perfis que compraram 88 anúncios para impulsionar o mesmo vídeo desde janeiro de 2023. Os anúncios direcionavam para oito sites diferentes onde as vítimas eram pressionadas a fazer pagamentos por Pix. 

Segundo Carlos Eduardo, as plataformas são uma espécie de ponte entre a vítima e o golpista, porque armazenam os dados dos usuários e direcionam os anúncios de acordo com o perfil da vítima. “Esse modelo de negócio é baseado na produção de dados que os usuários fornecem durante o uso das redes. Por exemplo, o meu vizinho pode não ver o mesmo anúncio que aparece para mim, porque não é demarcado por região, família, raça, classe, pelo menos não diretamente. É demarcado por comportamento on-line”, esclarece o pesquisador.

Em um levantamento extra do estudo, o Netlab encontrou mais 165 anúncios com o mesmo tipo de conteúdo que não foram categorizados como “sensíveis” pela plataforma, nem mesmo arquivados pela biblioteca da Meta, onde ficam armazenados todos os anúncios. Segundo o relatório, conteúdos não classificados como sensíveis desaparecem da biblioteca ao fim do período de veiculação, o que dificulta sua identificação e análise. “Essa indústria da influência se sofistica à medida que incorpora práticas de microssegmentação da base de usuários das plataformas, beneficiando-se de um ambiente digital desregulamentado e sem transparência para empresas e usuários”, explica o estudo.

A importância da transparência

Para Carlos Eduardo, a importância da regulamentação das plataformas digitais se dá principalmente em torno da necessidade da transparência de dados. Segundo ele, a sociedade em geral não tem total dimensão de como funcionam as veiculações de qualquer conteúdo nas redes e muito menos como são mediadas pelos algoritmos. No entanto, também afirma que isso já vem mudando com o debate público. Um exemplo é a discussão em torno do PL 2630, popularmente conhecido como “PL das Fake News”, que transforma em leis algumas diretrizes de regulamentação da internet. O texto estabelece, por exemplo, a obrigatoriedade de relatórios sobre os dados das plataformas. 

Apesar de a legislação gerar discussões frequentes entre os parlamentares e estar com votação parada no Congresso, Carlos Eduardo diz que o início de um debate sobre o assunto já é muito importante para a sociedade e que a transparência é algo para todos, tanto para pesquisadores e cientistas quanto para usuários da sociedade civil.

“Para nós, a grande questão é a transparência em si, até porque ela não começa e também não termina numa lei. Ela vai sempre precisar ser atualizada. Então, quando eu falo que nós [Netlab] entendemos esse lugar político da ciência, no sentido de auxiliar políticas públicas, é inclusive para a opinião pública. Não é só a decisão do dono da empresa ou do anunciante, mas também a decisão do cidadão sobre como pressionar e em quem confiar”, finaliza Carlos Eduardo.

*Sob supervisão de Vanessa Almeida.