Fui caminhando mesmo. Pela primeira vez, tive a oportunidade de fazer uma pauta que ficasse tão perto da minha casa a ponto de chegar a pé. Dispensei o carro da Universidade e fui atravessando a passarela que liga os dois lados da Praça da Bandeira. Aquele lugar, pelo qual várias vezes eu já havia passado ao me encaminhar para a estação de trem do outro lado, abriga, como quem não quer nada, a Escola Nacional de Circo Luiz Olimecha. Lá, encontraria Moisés e Isabela, fotógrafo e extensionista do Conexão.
À primeira vista, nada mais do que um campo aberto. Mas isso é hoje. Por anos, um picadeiro mostrava que um circo residia ali. “Aqui a gente descobre muitas possibilidades de experimentar”, contou-me a professora mais antiga daquele lugar, dona Maria Delisier, de 82 anos, docente da escola há 40. Ao longo do dia, eu poderia entender melhor o que ela me falava.
É sempre uma experiência mais profunda quando vou trabalhar nas reportagens desta coluna. A partir da vontade de mostrar um pouco do “meu olhar” sobre a cultura e a sociedade, acabei por inventar este espaço. Seguindo o ditado “o que os olhos não veem o coração não sente”, podemos dizer que aqui, consequentemente, sentimos muito. E, desta vez, algo a mais me tocou. Talvez, justamente, por ser amante de experimentar.
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Em 27 de março é celebrado o Dia Nacional do Circo. No começo do mês, ao pensar nas pautas para as semanas seguintes, lembrei-me de haver um local para estudar a modalidade nos arredores da minha casa, o que rapidamente confirmei em minhas pesquisas. A Escola Nacional de Circo Luiz Olimecha (Enclo), fundada em 1982, fica bem na chegada da Praça da Bandeira, Zona Norte do Rio, antes da estação de trem e do prédio do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). No entanto, apesar de passar sempre por ali, nunca havia entrado.
Após algumas semanas na tentativa de contato, conseguimos uma vaga na agenda para acompanhar um dia de aulas na última sexta-feira antes da data comemorativa, em meio às transformações que vêm acontecendo na escola desde a mudança na presidência do país: o consequente retorno do Ministério da Cultura (Minc) e o fortalecimento da Fundação Nacional de Artes (Funarte). Responsável pela escola, a Funarte, em parceria com o Instituto Federal do Rio de Janeiro (IFRJ), oferece um curso técnico com duração de dois anos e bolsa de cerca de R$ 2.500,00 a todos os alunos.
No momento, pouco mais de 50 estudantes cumprem a formação e têm acesso à bolsa, que se faz necessária diante da carga horária integral. As aulas acontecem das 7h40 às 17h e, para alcançar a vaga almejada, os candidatos passam por algumas etapas nas quais precisam mostrar suas habilidades: primeiramente, de forma remota, por meio de vídeos demonstrando habilidades em circo; depois, há pessoalmente uma averiguação para a última seleção. A prova é difícil, segundo os alunos e a coordenadora-geral, Luciana Belchior.
Além de ser ex-aluna da escola, ela também é professora de acrobacias aéreas, modalidade que privilegia técnicas que envolvem, por exemplo, tecidos e lira − um círculo de ferro pendurado no ar. Agora, a circense assume o desafio de equilibrar o ensino com a parte administrativa da instituição, estando à frente da gestão. Servidora pública desde 2014, ela é uma entre os cinco professores concursados da Enclo. A maioria que compõe o quadro, no entanto, é contratada, formando um corpo docente bem variado que passa tanto por ex-atletas quanto por profissionais que cresceram em circos tradicionais.
A vida no picadeiro
Os professores mais antigos da escola cresceram no circo e aprenderam, enquanto crianças, os números e as disciplinas que hoje ensinam. Isso é motivo de orgulho para todos, como pudemos perceber na conversa com Luciana, que por algumas vezes repetiu a história de Maria Delisier Rethy e Pirajá Bastos. Ambos tiveram suas vidas dedicadas ao picadeiro desde pequenos, rodando o interior do país em circos familiares.
Atentos e fortes, os dois acompanham cada movimento dos alunos, ensinando as melhores técnicas para que eles alcancem seus objetivos. Entre uma troca de movimento e outra, em rápida conversa, seu Pirajá contou um pouco da sua história para a gente enquanto lecionava a técnica de “parada de mão”, com a qual o artista apoia as mãos no chão ou em outros aparelhos no solo ao manter os pés na vertical para cima.
O professor foi integrante da quarta geração de circo na família, que inclusive era proprietária do empreendimento. No entanto, com o passar dos anos, com o advento das mudanças estruturais da sociedade e a chegada da internet, ele foi percebendo no filho e nos sobrinhos a mudança de postura em relação ao picadeiro. O desejo daqueles jovens por se fixar em um lugar e estudar dificultava a essência instável da arte. Também ficava cada vez mais difícil se manter dono de circo diante da falta de incentivo.
“O circo ainda é uma atração que não tem ajuda nenhuma do governo. O sacrifício que se faz para ir ao interior com cerca de 30 a 40 pessoas é imenso. Esse também é um dos motivos de as famílias tradicionais irem abandonando”, explicou Pirajá.
De longe, observávamos dona Delisier, que viria a confirmar a história. Com seus 82 anos dedicados ao circo, ela raramente aparece sentada, exceto por uma leve dorzinha no joelho, que tem sentido ultimamente. Como estava instruindo uma aluna de barra vertical − em movimentos parecidos com a pole dance, porém com a barra giratória e presa em apenas uma das extremidades −, pediu que nos falássemos depois. Esperei. Essas pausas eram bonitas de acompanhar, pois eu podia me sentar e assistir a saltos, piruetas, acrobacias de todos os tipos, no surgimento e aprimoramento. Quando ela, enfim, teve tempo, conversamos.
Delisier começou aos 5 anos a aprender a arte circense, mas desde antes dessa idade já estava no picadeiro no cotidiano. Foi aprendendo com a irmã e outros familiares todas as modalidades possíveis, para que pudesse enfim escolher. Percebeu, assim, que gostava muito do trapézio.
Apesar de ter sido também dona de circo, ela reforça o que diz Pirajá sobre as dificuldades estruturais e financeiras da arte, inclusive na Enclo, onde trabalha desde a sua inauguração, em 1982. Mas mesmo com as dificuldades ela fica feliz de ver a escola se mantendo forte, com muitos alunos e boas aulas. “Eu dou esperança para eles, dizendo ‘ame aquilo que você faz’. Dou todo o amor e a minha técnica”, declara.
Sem picadeiro
Desde a inauguração da escola, há quase 41 anos, as aulas da Enclo funcionavam na parte exterior do prédio, sob uma lona de circo, como um picadeiro tradicional. Na última gestão, no entanto, a lona foi retirada, fazendo com que as aulas tivessem que acontecer no prédio, já que o espaço descampado fica, principalmente no verão, sob sol muito quente para alunos e professores conseguirem treinar ao longo de um dia inteiro.
Mas os artistas deram um jeito. Entre as escadas, salas e a área central do prédio, tudo pode se transformar em circo, basta que surjam alguns tecidos, camas elásticas, barras, colchonetes e outros aparelhos específicos. O que, para alguns, é apenas uma aula, para outros, se torna um verdadeiro espetáculo.
Em todo o tempo, eles trabalham muito com o corpo. Para quem vê, é lindo. A fluidez dos movimentos e a variedade das modalidades atraem e distraem os olhares, simultaneamente, como na tentativa de agarrar todos os movimentos, proporcionais também à variedade de corpos e origens.
Escola (inter)nacional
Em uma escola que leva “nacional” no nome, surpreende a quantidade de estudantes de fora do Brasil. Equador, Chile e outros países da América Latina, em sua maioria, estão ali representados por pessoas que deixaram seus lugares de origem para buscar novos desafios em uma instituição de ensino reconhecida internacionalmente.
É o caso do Pablo Muñoz, equatoriano de 28 anos que cursa essa empreitada. Com uma história de aproximação com as técnicas a partir do circo social, ele se inscreveu para as etapas eliminatórias da Enclo e veio até o Brasil para a última rodada, presencial. Apostou e deu certo. Hoje está se aprimorando em tecido, corda e faixa.
Variando apenas a quantidade de quilômetros, essa é a realidade da maioria. Nas horas em que ali estivemos, encontramos pessoas de todas as regiões do país: Paraná, Bahia, Amazonas, Goiás, Minas Gerais etc. A maneira como chegaram ao circo varia, embora o cansaço e a proporcional força de vontade em continuar sejam semelhantes. A catarinense Cristiane Deloglio, de 18 anos, estudou muito para passar na etapa de vídeos e na presencial. Não acreditou quando foi selecionada para fazer o que ama. Hoje, ela mora no Rio de Janeiro com dois amigos chilenos do curso. “É difícil, mas às vezes cai a ficha de que realmente estou aqui. Eu conquistei isso, é muito bom”, celebra.
Apesar do amor pela arte, nem todos eles vislumbram o futuro em circos tradicionais, exceto quando se fala no renomado Cirque du Soleil. A maioria acaba pensando em atuar em projetos artísticos solo ou que incorporem a linguagem e os números circenses que eles podem oferecer. Delisier conta que nem todos os alunos se adaptam à realidade nômade de estar sempre em trânsito. Com certa resistência, ela confessou que sente falta de como era antes, e que todas as mudanças fazem perder a ilusão, que é a essência do circo. “Você tem que gostar muito para seguir”, desabafou.
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Já quase no fim da sexta-feira, fui acompanhar a última aula a que eu assistiria: a de Palhaçaria. Estava ansiosa por isso, tentando também entender por que é uma disciplina complementar e não faz parte da grade principal. Conversei um pouco com a professora Regina Oliveira antes de ela começar, mas foi a dinâmica da classe que muito me encantou. Uma possibilidade extra de ser quem você é. Por algum momento, eu só queria estar fazendo parte daquilo. Como estava trabalhando, não me atrevi a pedir para participar. Até agora me pergunto se deveria.
Ainda assim, uma coisa eu entendi quando saí da sala e encontrei novamente Delisier. Enquanto deixávamos o espaço juntas, contei que também tenho o meu afeto pessoal pelas artes e o quanto fiquei interessada pela última aula. Recebi dela a resposta que nem sabia de que precisava: “O circo faz isso com a gente, minha filha: nos dá infinitas possibilidades de experimentar até achar o que a gente precisa. Você achou essa”, incentivou ela ao se despedir de mim e me convidar a aparecer mais vezes. Afinal, dá para ir caminhando mesmo…