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Cuidado quilombola: um olhar diferente sobre saúde

Em estudo publicado na revista da Escola de Enfermagem da UFRJ, comunidade quilombola conta como o cuidado se relaciona com saberes tradicionais

“Eu levo ele mais para ver as questões da vacina e também do peso e altura”, disse uma cuidadora do quilombo Santa Rita de Barreira, no Pará. Os saberes medicinais dos quilombolas, ligados à natureza e a crenças religiosas, reduzem a necessidade de buscar um posto de saúde para tratar as crianças da comunidade. As práticas tradicionais evidenciam uma relação diferente da visão ocidental entre o cuidado e o sistema básico de saúde.

O estudo, “Práticas de cuidado em saúde com crianças quilombolas”, publicado na revista da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio de Janeiro, entrevistou 18 mulheres, entre 20 e 67 anos, que cuidam de crianças na comunidade. Setenta e oito por cento delas têm a agricultura de subsistência como forma de sustento e recebem menos de um salário mínimo por mês. A comunidade fica em São Miguel do Guamá, no nordeste do Pará, na zona rural da cidade. Os quilombolas compreendem que os cuidados de saúde envolvem carinho e atenção à criança:

“Quando eu olho para ele, vejo que muda, fica diferente: se é alegre, fica mais triste. Esses dias, vi que ele estava triste, não estava brincando, e ele também gosta de ficar dançando. Quando notei que bateu a perna, tudo mudou, eu já sabia que ele estava doente”, afirmou uma das entrevistadas. 

A comunidade utiliza chás e banhos com folhas e raízes para tratar doenças gripais, febre e infecções. Azeites e gorduras de galinhas são para induzir respostas anti-inflamatórias. A benzedura evita que as crianças sejam afetadas por feitiços de seres míticos. Nesse contexto, o entendimento de cuidado não se restringe à medicalização e vai muito além. Dar banho, oferecer alimentação saudável, ter zelo com a casa são algumas das interpretações de cuidado apresentadas pelas entrevistadas na pesquisa.

Os cuidados com crianças são prioritariamente realizados por meio das práticas baseadas nos conhecimentos tradicionais, mas há também a utilização de medicamentos convencionais de forma associada à medicina nativa. Os tratamentos caseiros são a primeira opção, usados em larga escala e têm sua eficácia reconhecida.

Acesso aos serviços de saúde

O quilombo Santa Rita de Barreira fica afastado do centro urbano, a 10 quilômetros de uma Unidade de Saúde da Família. Apesar da aparente pouca distância, o acesso pelo transporte público é difícil. O ônibus só passa uma vez por dia e entre 6h30 e 7h. Quem é do “interior”, como classifica uma entrevistada, chega cedo e precisa esperar até as 9h para começar a ser atendido. A dificuldade de marcar consultas também afeta a inserção dos quilombolas ao sistema formal. Segundo Ana Kedma Pinheiro, doutoranda em Enfermagem pela UFRJ e coautora do estudo, existe uma invisibilidade em relação aos quilombolas:

“Eles acessam esse serviço quando as alternativas medicinais e o que eles compreendem de saúde já não está fazendo mais efeito e por uma consulta periódica que é agendada. Então, eles não conseguem conhecer a totalidade do serviço de saúde, por causa do processo de invisibilidade. O serviço de saúde deveria ser mais próximo da realidade quilombola.”

Por isso, vacinar, medir altura e peso são os principais usos do sistema básico. Lauro Nascimento, autor do estudo e residente de Enfermagem da Universidade Estadual do Pará, acredita que os médicos precisam dar mais atenção às crianças que vão às unidades para exames de rotina:

“Por serem da zona rural e por terem uma dinâmica de vida diferente, em que grau estou olhando essas crianças como diferenciadas e inseridas em um contexto de doenças infecciosas e parasitárias? Em nenhum momento, elas tiveram inclusão dentro das suas questões prioritárias, que precisam ser investigadas”.         

Além disso, 83% das cuidadoras não têm renda suficiente e precisam receber auxílios governamentais. Com isso, conseguir medicamentos é difícil e elas recorrem aos tratamentos naturais:

“Eu prefiro fazer o remédio caseiro a levar em um serviço de saúde, porque os profissionais de saúde passam esses remédios de farmácia e, às vezes, é difícil de comprar, porque a gente não tem dinheiro. Então temos que dar o nosso jeito. O remédio caseiro, a gente consegue emprestado, às vezes até no quintal mesmo. Aí eu faço aqui com as coisas que eu tenho”, afirmou uma cuidadora entrevistada pelo estudo.

De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS/IBGE), a quantidade de pessoas de zonas rurais que conseguiram todos os medicamentos receitados aumentou no Brasil. Em 2013, eram pouco mais de 7 milhões; em 2019, eram quase 9 milhões. Pretos e pardos que vivem no campo sempre foram a maioria em obter todos os remédios. Apesar da melhora em nível nacional, comunidades quilombolas sofrem com ausência de políticas públicas que garantam o direito à saúde plena.

Em 2009, foi instituída a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) com o objetivo de combater o racismo institucional e promover saúde a pretos e pardos, que são 56% da população brasileira, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua de 2021. Doze anos depois, a PNSIPN foi implementada em apenas 32% dos municípios. Na cidade de São Miguel do Guamá, nenhuma ação prevista na política de saúde foi incluída no Plano Municipal de Saúde, segundo Pesquisa de Informações Básicas Municipais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Quilombos: preservação da cultura ancestral

No período colonial, os escravizados que fugiam das fazendas se organizavam em quilombos, uma forma de resistência e retorno à ancestralidade africana. Palmares, quilombo mais conhecido do Brasil, dá nome à fundação que certifica as Comunidades Remanescentes de Quilombo. De acordo com a Fundação Cultural Palmares, existem 2.859 territórios quilombolas certificados e 140 esperando pela certificação. O Brasil tem 386.750 habitantes que se autodeclaram quilombolas, segundo as parciais de agosto do Censo 2022. É a primeira vez na história do IBGE que o Censo vai identificar essa população, possibilitando dados mais específicos sobre esse grupo que preserva saberes tradicionais.

As práticas de saúde nos quilombos encontram resistência no sistema formal, apesar de algumas serem consideradas Práticas Integrativas e Complementares. Entre 2013 e 2019, a taxa de pessoas que utilizaram esse tipo de tratamento caiu quase 94%, de acordo com a PNS. Cerca de 9,5 milhões de brasileiros, em um país com mais de 215 milhões,  utilizam essas terapias. Segundo Nascimento, o preconceito com outras formas de lidar com doenças começa com os profissionais de saúde:

“Quando uma mãe entra no consultório e fala que o filho está com quebranto porque um bicho da floresta olhou para ele e fez com que adoecesse, é  comum que os profissionais rejeitem essa hipótese e tentem apenas encaixar os seus métodos biológicos de entender a doença. A gente enquanto profissional também precisa ajudar na  valorização desses conhecimentos,  trazendo como aliados e de maneira a complementar o nosso tratamento.”

Para Kedma Pinheiro, é preciso destacar tais práticas tradicionais, que são cuidados passados de geração em geração e que fazem parte da cultura amazônica, para “revelar a importância dessa Amazônia para o mundo inteiro”.