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Meu Olhar: histórias verde-amarelas

A Copa do Mundo inspirou a nossa equipe a acompanhar o retorno das cores da bandeira como representação de um desejo comum

Tassia Menezes 

Na primeira semana da Copa do Mundo 2022, as esquinas, as cores e a animação do povo nos fizeram pensar: vamos fazer uma reportagem sobre isso! Após dias rodando bairros e vivenciando as experiências das muitas torcidas que tomaram de volta para elas o verde e amarelo, no dia em que o Brasil perdeu o jogo contra a Croácia e foi eliminado do mundial, a nossa equipe não estava em serviço. Particularmente, a primeira coisa em que pensei quando vi aquele último pênalti ser perdido foi que eu deveria ter ido para a Maré, onde estava no dia da goleada contra a Coreia do Sul e, gentilmente, havia sido convidada a retornar. 

Ao longo dos muitos encontros, uma das coisas que mais ouvimos foi sobre como o futebol envolve superstições. Naquele momento, tive certeza. Os olhares tristes após aquela derrota contrastavam com os sorrisos de poucos dias antes. Assim, o “meu olhar” novamente voltou a ser requisitado. Eram muitas histórias que solicitavam ganhar vida. Desde já, informo que talvez não consiga contar todas. Algumas serão para sempre minhas; as outras vocês encontrarão por aqui. No fim, é sobre enxergarem pelo nosso olhar, nas fotos, nas cores e nos escritos, um pouco do que vivemos nesses dias especiais, enquanto ainda havia a esperança de o hexa chegar. 

Decoração na Rua Benjamin Constant, na Glória. | Foto: Fábio Caffé (SGCOM/UFRJ)

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Difícil saber por onde começar. Poderia escolher a ordem cronológica e contar que dividimos a nossa cobertura em duas experiências: uma visita à rua Benjamin Constant, na Glória, no dia 2/12, quando o Brasil enfrentou Camarões; e outra ao Complexo de Favelas da Maré, mais especificamente na Nova Holanda, no dia 5/12, quando houve a goleada de 4×1 contra a Coreia do Sul. 

Outra opção seria seguir o meu desejo e iniciar o relato pela história da dona Helena Edir, de 72 anos, uma matriarca do Complexo da Maré, que há anos é responsável pela decoração da rua Ivete Vargas durante as copas do mundo. Esse é apenas um dos atributos dela, que, além de ser conhecida como a “mãe de todos”, também é educadora e engajada nos movimentos sociais de mulheres e negros no bairro. Dona Helena foi a última pessoa que encontramos ao longo dos dois dias, mas mesmo antes de vê-la foi comum ouvir seu nome entre os moradores. Afinal, sem ela, o verde e amarelo talvez não estivesse assim tão presente naquela rua. 

Não só por ela, certamente. Afinal, é tudo feito coletivamente. Outra vizinha, a dona Maria da Penha, além de ser outra decoradora ativa, cede a garagem da sua casa e sua televisão para fazer a transmissão oficial da rua. Moradora da Maré há 45 anos, ela se mudou quando casou e nunca mais saiu. Conhece e já pegou no colo muitos dos adultos que hoje levam suas crianças para assistirem aos jogos ali na porta de sua casa. Com direito a cadeiras para fazer de arquibancada, pipoca para as crianças no intervalo e um toldo colocado às pressas quando a chuva começou a cair, a alegria era contagiante (inclusive a minha) cada vez que a bola atingia a rede e marcava mais um para a seleção brasileira. Daquela vez, no entanto, ela decidiu não fazer o churrasco que tinha feito quando o Brasil perdeu para Camarões. Não queria trazer azar. Naquele dia, deu certo. 

Da mesma maneira, outro morador, o Hugo, defendeu que o Brasil só havia perdido para o país africano porque ele não estava bebendo. Afinal, na partida em que decidiu tomar de novo a sua “gelada”, logo nos seis primeiros minutos o Brasil já estava marcando. Enquanto isso, uma família na rua de trás fazia pela primeira vez um churrasco com os vizinhos, que afirmavam que teriam que manter a nova tradição. E eu, que virei a mascote da rua, fui acusada positivamente de levar sorte para o Brasil. Minha missão: voltar no jogo seguinte para garantir. “Futebol é superstição. Se fez e tá funcionando, tem que manter”, me disse uma das vizinhas. Sem pressão, né?

A rua toda torce muito. As crianças se vestem a caráter, bem brasileiras… É um encanto. E, naquele dia, a alegria pairava na Ivete Vargas, no meu rosto e de Fábio também, nosso fotógrafo. Porém, apesar de ser torcedora ferrenha, Dona Helena, de quem falamos mais cedo, não fez parte da festa. A prova de como ela é intensa quando se fala de Copa do Mundo é a foto que virou quadro na parede da casa da sobrinha Adriana, onde a matriarca também reside. A imagem mostra a matriarca chorando após a derrota do Brasil para a Alemanha, em 2014, no famoso 7 a 1. Desta vez, no entanto, ela não estava presente na torcida. Descobrimos o motivo quando, por acaso, após o fim do jogo, paramos na casa de Adriana. 

A razão é que, pouco antes de o campeonato começar, Helena e a rua inteira perderam uma pessoa muito querida: dona Vera Lúcia, irmã da educadora. Ela estava na rua arrumando as bandeirinhas quando passou mal e não resistiu. Apesar da dor da perda, uma homenagem foi feita, com a celebração de uma missa de sétimo dia naquela mesma rua, pintada e colorida por todos, incluindo a própria Vera, que deixou saudades.

Decoração na Rua Ivete Vargas, na Maré. | Foto: Fábio Caffé (SGCOM/UFRJ)

Tradição é tradição

Já que deixamos de lado o tempo linear, podemos agora voltar para a Glória e conhecer rapidamente um dos responsáveis pelas cores que permeiam a rua Benjamin Constant: Luis Claudio pinta aquela escadaria desde 1982, mas seu pai começou a tradição em 1970. Anfitriões quase sempre estão ocupados: quando chegamos, lá estava ele montando a televisão para garantir a transmissão. 

Na Glória, a experiência é diferente da Maré, por ser menos familiar e mais agregadora. Ali as pessoas não se conhecem, mas estão todas juntas em uma única torcida. Na rua, mais de uma televisão: a de seu Luis, algumas no bar da frente e, caminhando um pouco mais, um novo espaço que ganhou destaque esportivo por reunir flamenguistas ao longo dos jogos do ano: o Comida, Resenha e Futebol (CRF), liderado por Fabiano Mielke há pouco mais de um ano. Ele fica feliz de ter conseguido movimentar o “point”. 

Foi caminhando por ali que encontramos a Regina Lúcia, também conhecida como Regina Geladinha. Com um vestido exclusivo feito por ela mesma para acompanhar os jogos, a torcedora estava literalmente trajando a bandeira do Brasil. Com orgulho, disse que o usaria sempre, por trazer sorte, mesmo estando o jogo ainda no zero a zero. Junto de Luis e de outros, Regina foi uma das responsáveis pela pintura da escada. Ele mesmo nos contou que, neste ano, em virtude de os jogos da Copa terem estado muito próximos às eleições, optaram por fazer uma decoração menor do que a tradicional. Mas a escada não poderia faltar. 

Política e Futebol

Vitória Miranda

Com a Copa acontecendo logo após as novas eleições presidenciais, muitos viram a oportunidade de recuperar o sentido das cores do Brasil. A rua Benjamin Constant é decorada por seus moradores tradicionalmente desde 1982, com a  primeira pintura tendo sido feita em 1970, durante a ditadura militar. Para a Copa de 2022, a decoração foi realizada em novembro, após o segundo turno das votações, com o intuito de tirar a associação das cores do Brasil das discussões políticas. O importante era voltar a focar na seleção e no amor do brasileiro pelo futebol, já que a camisa é de toda a população.

Nessa festa única que a torcida brasileira faz, reconheço-me nos torcedores, que têm o futebol como tradição passada de geração em geração. A partir da forma como muito facilmente as ruas foram tomadas pelas cores da bandeira, a Copa talvez tenha sido uma solução para a segregação que a camisa verde e amarela estava causando. Minha paixão pelo esporte, por exemplo, tem influência direta da minha avó, Teresinha Candido. Flamenguista “roxa”, ela contagia a família com o amor pelo futebol. Nascida em 1954, acompanhou mais de 15 mundiais e comentou: “As ruas, as varandas eram bem mais enfeitadas. Tinha até concursos de qual era a rua mais bonita”. 

Neste ano, dona Teresa e meu avô Gilberto da Silva arrumaram a varanda com o verde e amarelo e várias bandeiras do Brasil. Apesar de animados para acompanhar mais uma Copa, não deixaram de comentar sobre o receio de as pessoas acharem que pudesse se tratar de um ato político: “Fiz pelo futebol, mas fiquei com medo de acharem que tem ligação com política”, contou ele.

Verde e amarelo de novo 

Tassia Menezes 

De volta às ruas, encontramos a correspondente bancária Célia Rocha. Com uma blusa amarelo vivo e uma calça verde, ela saiu da apresentação de teatro da filha e foi direto assistir ao jogo, orgulhosa das cores que carregava. Por tanto tempo associando-se as cores a indivíduos ou ideologias, é difícil esse assunto não surgir ao elogiar seu vestuário: “Estou adorando poder me vestir assim sem ter que ouvir piadas”, disse ela, enquanto o marido anunciava seu voto com orgulho. 

De outro lado, a aposentada Vilma Monteiro mostrava-se brasileira da cabeça aos pés −  até suas unhas estavam a caráter. Torcendo pelo hexa, que, por enquanto, ainda não virá, a moradora da rua recordou que sempre arrumava a mãe também para assistir aos jogos, fazia parte da tradição. 

Entre tradições e superstições, a comprovação de que fazer as coisas da mesma maneira não é garantia de vitória chegou junto com o gol naquele jogo arrastado contra Camarões. Já durante os nove minutos de acréscimo, com todos segurando a respiração enquanto assistiam a um empate que parecia imutável, o torcedor Valter decidiu que iria colocar a sua touca da sorte. Foi imediato: gol da seleção africana e derrota do Brasil.

Valter e sua “touca da sorte”. | Foto: Fábio Caffé (SGCOM/UFRJ)

Lembrar disso no final deste texto pode ser apenas uma forma de buscar a absolvição imaginária por não ter regressado à Maré para assistir àquele último jogo. Ou apenas a tentativa de conforto de  todos que, de alguma maneira, estão buscando motivos para explicar o inexplicável. Futebol é assim mesmo. No domingo, 18/12, poderíamos estar na torcida pelo Brasil na final. Ainda assim, enquanto não é possível celebrar o hexa, uma sugestão: não perder a esperança e a união que essa Copa trouxe de volta para a gente, junto com essas histórias verde-amarelas. 

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A verdade do porquê escolhi não acompanhar nenhum outro jogo para essa reportagem é que eu não conseguiria escrever sobre tudo. Tanto que aqui ainda falta a história do Álvaro Phillipe, de 7 anos, que ama futebol e em breve vai começar em um clube profissional. Da mesma forma, não consegui também falar sobre o André, esposo de Adriana, que em 2002 levou o sobrinho Alexandre para acompanhar, das passarelas da Avenida Brasil, a volta da seleção brasileira; e que em 1998 estava tocando junto com sua banda para um evento do consulado francês no dia em que o Brasil perdeu justamente para a França, tendo que segurar a tristeza durante o restante da noite.

Apesar da derrota, o meu olhar atento sorri ao relembrar tudo que observei, ao ver como ficamos bonitos quando estamos juntos de novo depois de tanto tempo. Se a gente conseguir se lembrar disso, vai ser mais tranquilo esperar pelos próximos quatro anos. E quem sabe em 2026 celebrar nos bares, nas ruas, nas passarelas o tão aguardado hexacampeonato.