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Meu olhar: quando o vento dança

O coletivo Mulheres ao Vento levou a potência de mulheres periféricas para o centro do Theatro Municipal

Tassia Menezes 

Eram rostos familiares e reais. Não por conhecê-los, mas por enxergar neles uma familiaridade. Era como se ali, naqueles semblantes, eu pudesse ver uma tia minha, a mãe da minha amiga e a cunhada da minha irmã. Todas iam sendo levadas pelo vento, aquele que parece ser o grande protagonista deste texto. Não à toa, denominam-se Mulheres ao Vento: um coletivo formado por mulheres periféricas, em sua maioria negras e com mais de 40 anos, que decidiram − não sem esforço −  ignorar o que as prendia e simplesmente voar.

Mais uma vez, então, venho contar outra história do ponto de vista da jornalista que vos escreve. E quem diria que chegaríamos tão longe com essa sessão? Que vocês me desculpem se eu estiver me excedendo, mas o que eu vivi nos últimos dias não poderia ser descrito por verbos em terceira pessoa. É necessário que seja a partir do “meu olhar”. 

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Chegamos no Centro de Artes da Maré (CAM) naquela manhã de quinta-feira para acompanhar o penúltimo ensaio antes da grande estreia da nova performance de Mulheres ao Vento (MAV) no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Elas iriam compor uma das apresentações da Semana de Arte Favelada, evento que está reunindo diferentes manifestações artísticas periféricas ao longo do mês de novembro. No dia 2/11, a ocupação seria em um dos espaços mais clássicos da cidade. 

Elas pareciam ansiosas pela chegada daquele momento. Muito focadas, ensaiavam suas falas e passos e me olhavam com curiosidade, algumas querendo saber a minha opinião, como se eu fosse uma crítica que pudesse aprovar ou não o que elas têm realizado. Ninguém precisaria, de fato, cumprir tal papel. 

O Mulheres ao Vento é um coletivo que existe desde 2016, a partir da idealização de duas ex-alunas de Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Simonne Alves e Andreza Jorge tinham um objetivo: encontrar uma forma de retornar para a periferia os saberes que haviam acumulado na Academia. Assim, iniciaram uma parceria com o CAM naquele ano, ainda sem saber exatamente as feições que o projeto tomaria. 

Foto: VItória Miranda (Conexão UFRJ)

Inicialmente, havia dois grupos separados por faixa etária: de 15 a 30 anos e de 30 em diante. Qual não foi a surpresa das coordenadoras ao perceber que, ao longo dos meses, a maior procura de mulheres com mais de 50 anos em participar iria moldar o Mulheres ao Vento da maneira que é hoje! “A gente se deparou com essas mulheres com sede de querer, de fazer, de estar junto e somar. Então, adaptamos a metodologia para esse público, e essa se tornou a nossa característica maior”, explica Simonne. 

A dissertação de mestrado de Simonne − Meu Corpo Dança: Um Estudo sobre Subjetividades de Mulheres Negras na Maré − teve como resultado uma videoperformance realizada durante a pandemia com as participantes do MAV. Após pesquisar a forma como a dança expressa os elementos e processos que constituem as subjetividades dessas mulheres pelo departamento de Antropologia Social do Museu Nacional (MN), Simonne agora faz seu doutorado no mesmo programa. Organizando-se para estar na Universidade de Harvard no fim deste ano para falar da sua pesquisa, a doutoranda celebra o grupo e tudo o que ele tem ajudado a tornar real. 

Ao longo desses cinco anos, o coletivo já viveu experiências mais do que especiais: além de apresentações em teatros no Rio de Janeiro e em São Paulo, elas participaram de uma residência artística que levou parte do grupo a Paris, na França, em 2022. Agora, a dança e o vento oferecem a elas a chance de apresentarem um espetáculo inédito no Theatro Municipal, levando àquele palco símbolos negros e afrodiaspóricos, como as entidades Eleguá e Oyá. 

Brincando com o vento

Eleguá é um dos nomes que se dá a Exu, orixá dos caminhos. É ele que libera a passagem, dá o movimento e permite que ele aconteça, em todos os tempos presentes, passados ou futuros. Já Oyá/Iansã é a orixá que inspira o nome do grupo. Conhecida por ser aquela que controla os ventos e tempestades, ela se transforma tanto em búfalo quanto em borboleta, indicando a intensidade das mudanças e transformações. 

Eu já sabia que eles faziam parte do espetáculo, pois havia acompanhado o ensaio no galpão na semana anterior. Dito isso, cheguei ao Theatro Municipal tranquilamente, preparada para assistir à performance do Mulheres ao Vento, mas ciente de que sabia o que veria e ouviria. Lá dentro, encontrei um lugar lindo, cheio de pessoas e de vida, apesar da chuva torrencial que caía do lado de fora no Dia de Finados. 

No entanto, bastou que o espetáculo se iniciasse para que eu me emocionasse do começo ao fim. Fui levada pelo vento. Acompanhada por uma banda toda composta por mulheres, podia vê-las e ouvi-las gritando seus nomes em alto e bom som, bem como suas profissões: “Rosimere, aposentada; Patrícia, cozinheira; Adriana, pedreira!” O que significava para elas ocupar aquele espaço? E para mim?

Rosimere (em destaque) tem 61 anos e é aposentada. | Foto: Dayana Sabany (MAV)

O espetáculo foi construído em conjunto, a partir das vivências reais daquelas mulheres. Em dado momento, Lurdinha Araújo conta no palco a experiência de estar na calçada, sentada com seus três filhos, enquanto via sua casa pegando fogo. Eu sabia da história, pois ela já havia me contado: seu ex-marido fora o responsável por isso, há mais de 20 anos. Apesar da dor, ela estava ali renascendo desse fogo, como uma fênix. “Eu não quis passar tristeza, mas sim mostrar que dei a volta por cima. Hoje, tenho a minha casa e meus filhos estão todos bem”, reforça a moradora de Campo Grande. 

Nesses dias, ouvi muitas histórias, como a de Adriana, 35 anos, que se curou da depressão graças à motivação do MAV; a de Rosimere, 61 anos, que parou de sentir tantas dores no corpo em virtude dos movimentos que passaram a fazer parte da sua vida; a de Patrícia, 46 anos, que vem aos poucos abandonando a timidez para poder se expressar. “A gente pega um pedacinho de cada uma como exemplo. Aprendo muito”, conta ela.

Adriana e Lurdinha em cena. | Foto: Dayana Sabany (MAV)

No fim, a curiosidade em saber se haviam se divertido é respondida com inúmeros sorrisos no rosto e na vontade de fazer sempre mais: “Passa tão rápido que parece que foi só um ensaio”, disse Sendy Silva, entre fotos e celebrações. Em comum, as saias que voam, o desejo de se enxergarem cada vez mais, fortalecerem-se umas nas outras e de realizar sonhos antes inimagináveis, apenas por serem quem são. 

Vitória Miranda 

Vi no Mulheres ao Vento um espaço para trazer conhecimento à comunidade e mostrar que favela é arte. Já no primeiro contato, no ensaio delas para a apresentação no Theatro Municipal, percebi a dimensão do projeto e como é representativo. Ele estabelece a relação de mulheres pretas e periféricas com a dança, o corpo sensual (qualquer corpo) e a música, com as histórias sendo contadas pela fala e pelo movimento.

O amor pelo que fazem é visto nas feições, nos sorrisos, no suor e no olhar de cada mulher presente naquele ensaio. E, assim, o Mulheres ao Vento me marcou de diversas maneiras. A partir da faixa etária das participantes, com a maioria acima dos 50 anos, elas demonstraram como se expressar por meio do corpo e da fala. Em conversa com Simonne Alves, cria do Morro São José (em Madureira), ela relatou: “A nossa mais velha tem 77 anos e faz mais coisa do que muita gente; isso é muito mágico”. A filha e a neta dessa integrante também fazem parte do projeto. Com três gerações da mesma família dividindo o mesmo espaço de criação, elas relembram a importância e a força da ancestralidade e da maternidade.  

O grupo completo no Theatro Municipal. | Foto: Dayana Sabany (MAV)

Se a lógica de ser periférico pressupõe a ideia de estar distante de um centro, o MAV chega com a proposta de desmistificar isso, incluindo mulheres e mostrando que são verdadeiras deusas e guerreiras. Assim como Oyá, elas passaram e passam por diversas tempestades em suas trajetórias, mas se tornaram donas do vento e aprenderam a dançar com ele.