Em toda véspera de data comemorativa, em horário vespertino, as crianças reuniam-se em bloquinhos separados em turmas. Cada bloquinho, regido por uma ou duas professoras (variando de acordo com a idade média da turma), ensaiava uma música. Mentira seria dizer que, encoberta por euforia e excitação, não havia competição entre as turmas, afinal todos almejavam emocionar o público, tornando-se o assunto principal entre os cochichos no recreio.
O Dia das Mães aproximava-se rapidamente e com ele a dificuldade de escolher uma música de harmonia fácil e letra comovente: a música perfeita. O quarto ano, turma de Nico, apressou-se em declarar uma novidade: neste ano, apresentariam uma música autoral, composta por versos recolhidos de poemas individuais escritos por cada criança da turma, que, quando juntos, prometiam trazer lágrimas a qualquer um.
Após a escolha da música, os ensaios começavam – o que era mais um motivo para correria. Os vinte minutos finais de cada aula eram convertidos e divididos em aquecimento vocal e cantoria. No geral, o primeiro momento era o mais difícil. A tarefa de equalizar cada vozinha estridente não era fácil, mas o pequeno quarto ano era dócil a ponto de uma professora ser suficiente.
No primeiro dia de ensaio, a turma mal continha-se. Era um tal de “remexe mexe” na cadeira, garrafinhas cheias de água e olhares sorridentes por todo canto. Com exceção de Nico. Seu olhar perdido era incapaz de concentrar-se na aula, não por animação, mas por timidez. Era o único a sair mais cedo nos dias de ensaio, acompanhado por Rosa, que profissionalmente disfarçava a tristeza ao encarar o humor cabisbaixo da criança.
Todavia Rosa foi incapaz de abster-se completamente. Arrumou um momento longe de Nico e pôs-se em esclarecimentos para dona Lita, mãe do pequeno.
– Apesar de tudo, dona Lita, ele mesmo se afasta das outras crianças – Rosa, intérprete de longa data, entrelaça os dedos. – Não que seja da minha conta, pelo contrário, apenas acho que a senhora deveria saber o que se passa.
Dona Lita acenou, ainda pensando na noite anterior, quando flagrou o rapazinho ensaiando ao passar pelo corredor da casa. Nico, concentrado em seus movimentos, não percebeu a presença da mãe e continuou apontando, levantando as mãos e abaixando-as em seguida, como se dançasse silenciosamente.
Vê-lo ensaiando, sozinho no quarto, para uma apresentação que nunca chegaria e, quando de fato chegasse, passaria como um aperto no coração era o que mais a entristecia. Tentara por diversas vezes convencer o menino a apresentar-se com a turma, mesmo que acompanhado de Rosa, porém, tímido e envergonhado, sempre descartava a ideia como se espantasse um inseto, acompanhado de um sobrolho carregado.
Dessa forma, saindo sorrateiramente pelo canto da sala, sem nem despedir-se de Nana (coleguinha gentil que sempre sentava à sua frente), passavam-se os dias. Talvez fosse imaginação de Nico, mas as crianças pareciam cada vez mais distantes, cobrindo suas bocas com as mãos ao falar. Apesar de tudo, elas visivelmente não sussurravam e, de vez em quando, Nico tinha a sensação de que estavam comunicando-se com Rosa, o que deixava-o enraivecido, já que a intérprete era responsável por deixar o garoto consciente do que acontecia à sua volta.
Logo chegara o último ensaio, um dia antes da apresentação. Rosa atrasou-se naquela manhã, chegando esbaforida à casa de dona Lita, que não a questionou, apenas torcendo o nariz para Nico, que – já estressado após a longa semana – indelicadamente questionou o atraso.
– Desculpem-me, tive alguns imprevistos – respondeu Rosa, enfatizando as mãos no rosto e a expressão de cansada ao desculpar-se.
Rosa fez questão de entrar na sala antes do rapaz, que, ao entrar, sentiu como se um grande tumulto estivesse desfazendo-se aos poucos, como se as crianças estivessem ensaiando. Pensou que talvez Rosa estivesse tentando evitar lembrá-lo do quão deslocado sentia-se numa turma de ouvintes que não entendiam absolutamente nada sem a tradução da intérprete. Aborrecido e ignorando os olhares tristonhos lançados por Nana, sentou-se mais distante que o normal, de braços cruzados, como se estivesse indisposto a falar.
Ao término da aula, Nico agarrou a mochila e cruzou a sala com pisadas fortes, seguido pelas passadas espaçadas de Rosa. Após ensaiar sozinho pela última vez, passou a noite chorando em meio a soluços desafinados, acompanhado de Lita, que chorava do lado de fora do quarto, tomada pela angústia.
Finalmente: o Dia das Mães! Dona Lita, ansiosa a ponto de roer as unhas feito adolescente, correu até o quarto do filho logo cedo, esperando acordá-lo sem cerimônia com um cobertor de beijos, porém Nico já estava acordado, dando uma última olhada na letra da música. Escondeu-a sem sucesso embaixo do travesseiro.
– Feliz Dia das Mães para a melhor mãe do mundo! – com gestos magistrais, o pequeno arrancou um abraço regado de lágrimas de dona Lita, que percebeu ser a deixa para cobri-lo de beijos.
Como era dia de comemoração, não haveria aula, o que tornou o processo de convencer Nico a sair da cama mais difícil ainda.
Ele sempre ia às festas para prestigiar as apresentações dos colegas, principalmente a fim de empanturrar-se de algodão-doce com Nana, entretanto, como era dia festivo, Rosa folgava, o que tornava dona Lita intérprete situacional. E convenhamos que é muito mais complicado fazer bagunça com a mãe do lado!
Apesar de tudo, a empolgação contagiante de Lita convenceu Nico, que logo se aprontou, cheiroso e bem arrumado. Durante todo o trajeto, inquieto com as mãos, repassou mais de três vezes a música e, quando chegaram à escola, o terceiro ano havia acabado de descer do palco.
Rapidamente Nana encontrou-o, cumprimentando dona Lita e abraçando o rapaz.
– Que tal um algodão-doce? – Antes que Lita pudesse traduzir a frase, anunciaram a próxima apresentação: o quarto ano. Nico, detalhista, compreendeu a situação ao perceber os pelos eriçados no braço da menina.
– Você será incrível – o garoto sorriu juntamente à mãe.
Nana, olhando-o nos olhos, sorriu de volta e partiu na direção do palco.
Todo o quarto ano subiu à frente de todos ali presentes, enfileirados uns atrás dos outros por ordem de tamanho em um belo coro. Houve um minuto precedente à apresentação em que a professora tomou o microfone e pronunciou-se, lançando alguns olhares para Nico, que sorria envergonhado. De repente, em um susto, o menino abriu a boca, surpreso e confuso. Sua professora, ao fim do discurso, guiou alguém até o palco.
E, então, a apresentação começou. Nesse momento, os olhos de Nico encheram-se de lágrimas. Seu rosto enrubesceu. Todas as crianças cantavam em uníssono, porém o mais impressionante era que todas elas cantavam como Nico: com as mãos, seguindo as instruções de Rosa. Os movimentos eram como uma dança impecável, exceto por um errinho ou outro que ninguém jamais lembraria.
Lita enxugou o rosto do filho e acenou na direção do palco. Foi o suficiente. O pequeno saiu em disparada na direção das escadas, juntando-se à turma. Nana havia deixado um espaço estratégico para o garotinho logo na frente, ao seu lado.
Naquele dia, todos aplaudiram de pé, emocionados. Dona Lita quase pulou no palco para abraçar o filho. Nana e Nico empanturraram-se de algodão-doce e foram o assunto principal nos cochichos no recreio durante anos a fio. Eles, por fim, haviam encontrado a música perfeita.
Rafaella Fonseca, técnica em Química pelo IFRJ e hoje estudante de Ciência da Computação na UFRRJ, é encantada pela capacidade que a arte tem de emocionar e aproximar as pessoas. Por isso, ela busca trazer esse sentimento em seus projetos. Está no Instagram, em @ellaxrafa.