Em celebração ao Bicentenário da Independência do Brasil, as 12 partituras originais dos principais hinos pátrios, entre elas as dos quatro mais importantes – da Independência, Nacional, da Bandeira e da Proclamação da República –, já estão restauradas e expostas no Palácio do Planalto, em Brasília, desde o início do mês. As obras pertencem ao acervo da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EM/UFRJ) e é a primeira vez em que os documentos deixam as dependências da instituição para passarem por um processo de recuperação desde que deixaram os bicos de penas dos autores.
A iniciativa conta com apoio do programa Arte de Toda Gente, parceria entre a Fundação Nacional de Artes (Funarte) e a UFRJ, com curadoria de sua Escola de Música. O conjunto ficará em exposição no térreo do Palácio do Planalto de 6/9 até o fim de novembro, e grupos escolares poderão visitar a exposição, às terças e quintas-feiras. Depois, as partituras devem regressar ao Rio de Janeiro.
Para Ronal Silveira, diretor da Escola de Música da UFRJ, “a chegada dos originais dos hinos agora em Brasília marca um novo momento de percepção e valorização do nosso patrimônio. Um povo se reconhece de várias formas, e o símbolo da música pátria inspira este pertencimento, que é, muitas vezes, apenas subliminar. Restaurar é expor este material de grande valor histórico e permitir a valorização da nossa cultura, promovendo a consciência de ser brasileiro”.
A restauração
No Dia dos Povos Indígenas (19/4), os documentos raros deixaram, sob escolta da Polícia Militar, a biblioteca da EM – no Centro do Rio de Janeiro, onde estavam arquivados – e seguiram para Belo Horizonte em avião oficial do estado mineiro. Lá, os manuscritos originais foram recebidos pelos Dragões da Independência. Junto das composições históricas e símbolos nacionais, estavam o Hino da Feliz Aclamação de D. João VI e Estrela do Brasil, além de outros documentos que integram o processo de construção das melodias.
Ao mesmo tempo em que algumas obras eram exibidas ao público no Palácio da Liberdade, antiga sede administrativa do governo e residência oficial dos governadores de Minas Gerais inaugurada em 1898, outras partituras seguiam para o Arquivo Público Mineiro, uma instituição reconhecidamente especializada em recuperar documentos antigos. Os especialistas fizeram, então, um minucioso trabalho removendo manchas e o amarelecimento natural, além de recompor o papel, que ficou quebradiço com o tempo. Os pequenos rasgos foram preenchidos com enxertos, após uma higienização mecânica.
A equipe especializada do Arquivo Público Mineiro contou com a colaboração da Escola de Belas Artes da UFRJ. Em contrapartida pelo trabalho, as partituras ficaram expostas na antiga sede do governo de Minas até o fim de agosto. “Vale lembrar que recuperar e resguardar os documentos é trazer ao presente a memória viva para que outros brasileiros possam conhecer os símbolos que nos unem como nação”, disse na ocasião o vice-diretor da Escola de Música da UFRJ, o maestro Marcelo Jardim, em entrevistas sobre o processo de restauração dos originais dos hinos brasileiros.
Curiosidades sobre os hinos
O hino mais antigo que foi restaurado é de 1816 – Estrela do Brasil, de José Joaquim de Souza Negrão, que fora dedicado ao príncipe D. Pedro. O mais recente é o Hino à Bandeira, de 1906, de Francisco Braga, sobre poema de Olavo Bilac. Diversas curiosidades cercam as partituras. Uma delas é que a obra mais antiga se assemelha a uma ária de ópera e foi composta por Marcos Portugal, que foi o professor de música de Dom Pedro I. O outro manuscrito é a composição original do imperador, que, na tarde de 7/9/1822, musicou os versos do jornalista, político e poeta Evaristo Ferreira da Veiga e Barros. Aliás, a composição se tornou o primeiro hino do país, logo após o grito do Ipiranga. Mas teve vida curta, pois, a partir da abdicação de Pedro I, outro hino antilusitano conquistou os brasileiros.
Essa foi a primeira versão do atual Hino Nacional Brasileiro, composta em 1831 por Francisco Manuel da Silva e com letra de Ovídio Saraiva de Carvalho e Silva. Seus versos retratavam a insatisfação com os portugueses do primeiro império. Por muito tempo, ficou conhecido como “7 de abril” – a data da abdicação – e depois levou o nome de “Marcha Triunfal” até ganhar nova letra, em 1841, quando da coroação de Pedro II. Dessa vez, os versos exageravam nos elogios ao soberano que nasceu no país e vigorou até o golpe que o derrubou, em 1889.
O governo que se instalou sob a liderança do marechal Manuel Deodoro da Fonseca organizou um concurso público para escolher um novo hino, empenhado em solapar os legados monárquicos e substituí-los por símbolos nacionais republicanos. Quem ganhou a disputa foi Leopoldo Américo Miguez, à época diretor da Instituto Nacional de Música, antecessor da Escola de Música da UFRJ, com o hino que diz “Liberdade, liberdade / abre as asas sobre nós”. Reza a lenda que o marechal Deodoro decidira-se por manter a antiga melodia, uma vez que a população a cantava entusiasmada em festas, antes de serem os hinos tão associados a solenidades e ao militarismo.
Segundo texto publicado no site do Senado Federal, nos festejos do segundo mês da Proclamação da República, no Palácio Itamaraty, sede da Presidência, o ministro da Guerra, Benjamin Constant, apresentou a Deodoro os argumentos pela conservação do antigo hino. Aos primeiros acordes da antiga melodia, que era tocada com vigor pelos músicos que se apresentavam no Itamaraty, o público que acompanhava as celebrações entrou em pânico, acreditando se tratar de uma senha para a deflagração de um contragolpe para derrubar Deodoro e restabelecer a monarquia.
O governo provisório autenticou a antiga música, mas a letra não. Ela então passou a ser executada por instrumentos. Em 1906, outro diretor do Instituto Nacional de Música, o maestro Alberto Nepomuceno, percebeu diferenças na execução do hino pelas bandas militares durante a posse do presidente Afonso Pena. Ele decidiu comparar com a partitura original, composta no início do império pelo maestro Francisco Manoel da Silva, mas depois convenceu Afonso Pena a realizar um novo concurso público para a escolha de novos versos para o hino.
O poeta Joaquim Osório Duque-Estrada escreveu o poema que encantou o diretor do Instituto Nacional de Música. Alberto Nepomuceno decidiu imprimir várias cópias da letra, enviando-as para escolas e quartéis de todo o país, para que, mesmo sem ser oficial, começasse a ser aprendida por todos. Todavia, só em 1922, à véspera das celebrações pelo centenário da independência e sob gestão do presidente Epitácio Pessoa, os versos do poeta Duque-Estrada foram reconhecidos por meio do decreto nº 4.559, de 21 de agosto de 1922, enquanto a versão corrente do hino foi oficializada como símbolo nacional pela lei nº 5.700, de 1º de setembro de 1971, publicada no Diário Oficial (suplemento) de 2 de setembro de 1971.