As urnas eletrônicas marcam a história da democracia brasileira. Em 26 anos de uso, elas contribuíram para pôr fim a um passado de fraudes eleitorais e garantiram maior participação do público, tornando o sistema de votação brasileiro referência mundial. A novidade para as eleições de 2022 é que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) anunciou uma série de tecnologias que serão disponibilizadas nas urnas a fim de garantir a inclusão de pessoas com deficiência – especialmente visual e auditiva – no processo eleitoral.
Entre os recursos anunciados para a eleição deste ano, estão a apresentação de intérprete de Língua Brasileira de Sinais (Libras) na tela da urna, para indicar quais cargos estão em votação, e o aprimoramento do sintetizador de voz, que agora fala os nomes dos candidatos, vices e suplentes que concorrem ao pleito. Mas como essas medidas favorecem a inclusão? O Conexão UFRJ ajuda você a entender o processo.
Mayra Goulart, cientista política e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, explica que, mesmo no mito original da democracia, eram necessários mecanismos que incentivassem determinados segmentos da população a participarem dos processos políticos – ou seja, mecanismos para além da autosseleção: mais que ser permitido, é necessário ser incentivado, sobretudo quando se trata de grupos específicos. Dessa forma, apesar da garantia ao sufrágio, algumas barreiras (discriminação, falta de acessibilidade, indisponibilidade de informações sobre eleições e partidos) ainda impedem diversos grupos mais vulneráveis de exercerem seu potencial político.
“Imagine, por exemplo, uma pessoa que tenha dificuldades para chegar a uma seção eleitoral ou um eleitor com deficiência que não se sinta acolhido e desista de exercer seus direitos… Isso vai fazer com que todos aqueles que têm maior facilidade de chegar aos processos eleitorais – seja porque têm dinheiro e podem se ausentar no trabalho, seja porque têm mais facilidade de chegar nos lugares, seja por serem mais familiarizados com esse tipo de discussão política – continuem sendo sobrerrepresentados. São necessários, portanto, outros mecanismos de incentivo – e garantir a inclusão é um deles”, explica.
A docente também destaca o caminho inverso: a falta de acessibilidade no processo eleitoral pode indicar uma sub-representação de pessoas com deficiência nos cargos eletivos. Nas últimas eleições para cargos do Congresso Nacional, por exemplo, apenas uma senadora (1,23% do número total de senadores) e um deputado federal (0,19% do número total de deputados) com deficiência foram eleitos. Neste ano, dados recentes do TSE mostram que o tribunal registrou a candidatura de 475 pessoas com deficiência para concorrer às eleições – número que equivale a 1,6% do total de pedidos de candidaturas. Em contrapartida, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) afirma que 8,4% da população acima de 2 anos têm algum tipo de deficiência, conforme dados da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), realizada em 2019.
Se a ideia da democracia brasileira é de ser representativa – ter nas estruturas de poder ampla diversidade que retrate o perfil de sua população –, é imprescindível que os eleitores também sejam diversos. A pesquisadora faz uma analogia com o acesso às urnas pelo público feminino, que, até 1967, não era obrigado a votar. “Isso fez com que as mulheres votassem muito menos que os homens e fossem sub-representadas durante muitos processos eleitorais. Então, esse é um caso interessante para a gente entender como às vezes a própria obrigatoriedade do voto é um mecanismo de incentivo”, diz Goulart, que também coordena o Laboratório de Partidos, Eleições e Política Comparada (Lappcom/UFRJ).
Além da obrigatoriedade do voto para todos os públicos e o atendimento prioritário a pessoas com deficiência, mobilidade reduzida, idade igual ou superior a 60 anos, gestantes, lactantes e pessoas com crianças de colo, algumas outras ações foram introduzidas no processo eleitoral brasileiro para garantir que as minorias fossem mais bem representadas nas esferas legislativa e executiva. Como exemplos disso, estão as cotas de gênero e raça para acesso ao Fundo Eleitoral e o contingente mínimo de candidatos por partido. Dessa maneira, ferramentas como as propostas pelo TSE para o próximo pleito tornam as urnas mais acessíveis e o processo eleitoral mais democrático, dando mais autonomia para que as pessoas com deficiência possam escolher os seus representantes.
As tecnologias assistivas anunciadas pelo TSE
Para o informático e professor Antonio Borges, do Instituto Tércio Pacitti de Aplicações e Pesquisas Computacionais (NCE/UFRJ), quando se fala em processo eleitoral, é interessante pensar que todos deveriam poder exercer o direito de expressar sua opinião e escolher o candidato que julgam mais conveniente para cada cargo, sem empecilhos. Mas o pesquisador destaca que a sociedade não se preparou para oferecer esse direito a uma parcela da população: há eleitores que não podem sair de casa por razões de mobilidade ou que estão longe dos seus municípios eleitorais. Ou, ainda, os que têm alguma deficiência sensorial. Borges argumenta que é preciso incluí-las no processo.
“O que é democracia? Na verdade, é um processo de governança do mundo em que você tem a possibilidade de dizer o que deseja. À medida que consegue fazer isso utilizando as formas habituais – ou seja, falando e escrevendo –, você está exercendo sua posição democrática. Mas e quando você não consegue falar? E quando não consegue registrar em texto escrito aquilo que deseja? E quando não compreende o que está sendo falado?”, indaga o professor, que também é um dos fundadores do Laboratório TecnoAssist, onde coordena pesquisas em tecnologia assistiva e o desenvolvimento de diversos softwares acessíveis, entre eles um dos mais importantes sistemas computacionais para apoio a pessoas com deficiência no Brasil, o DosVox.
Segundo Borges, a tecnologia assistiva entra nesse processo como ponte: ela traduz para o usuário aquilo que está sendo desejado, questionado ou exibido. Assim, ainda que a pessoa não consiga responder de alguma maneira – da forma textual, falada ou gestual –, sua expressão será garantida por meio da ferramenta.
Hoje as urnas eletrônicas colocam à disposição da pessoa com deficiência visual o teclado em Braille e a marcação da tecla 5, para que o eleitor possa identificar a disposição das teclas no objeto. Além disso, por meio de fones de ouvido fornecidos aos usuários pela Justiça Eleitoral, o eleitor pode ouvir as perguntas que são exibidas na tela e receber alguns feedbacks – a exemplo do nome do candidato, seu cargo e partido, de maneira que tenha confiança de estar fazendo uma votação correta. Também é possível entrar na seção eleitoral na companhia de cão-guia, bem como receber auxílio de alguém de confiança na hora do voto, mesmo que não tenha requerido antecipadamente ao juiz eleitoral.
Já para pessoas surdas usuárias de Libras, haverá um intérprete em tela, sinalizando todo o conteúdo escrito em língua portuguesa. Borges recebe com entusiasmo as novas medidas do TSE e destaca que é possível ir além.
“E quando uma pessoa não tem mãos ou tem os membros paralisados? O que elas gostariam de fazer? Como se sentiriam confortáveis votando? É sempre possível pensar na adição de novas tecnologias assistivas para garantir a participação. A tecnologia de reconhecimento de voz, por exemplo, poderia ser utilizada para alguém que não tem mãos e consegue falar. Mas e para quem não consegue? É claro que tudo isso tem que ser objeto de muita pesquisa e muito ajuste a fim de que não se crie no processo de votação nenhuma situação de falta de confiança – nem por parte do eleitor, nem por parte do processo eleitoral como um todo”, destaca.
Para o pesquisador, não se pode pensar na tecnologia assistiva como um milagre, uma ferramenta que funcione automaticamente, por si só. É necessária toda uma infraestrutura que vai além da urna: o eleitor tem que sair de casa, ter acesso a um transporte que contemple suas necessidades específicas, obter orientações sobre o processo por uma pessoa capacitada, suplantar obstáculos físicos que possam existir até chegar ao local de votação, entre outras barreiras que estão presentes na sociedade.
“Tudo faz parte de uma grande equação, e realmente é difícil equilibrá-la. É importante que haja sempre uma boa vontade muito grande e conscientização de que determinados problemas certamente vão ocorrer, e eles precisam ser solucionados para que a pessoa com deficiência consiga exercer da forma mais democrática possível, da forma mais independente possível, o seu direito a votar”, defende.
A experiência das pessoas com deficiência
As atualizações na urna eletrônica com novos recursos de acessibilidade são importantes para que mais pessoas se sintam representadas e possam exercer seus direitos políticos de forma plena. Entretanto, os eleitores com deficiência avaliam a necessidade de que os locais de votação e profissionais que os auxiliam estejam preparados para recebê-los. Por isso, algumas seções eleitorais têm espaços adaptados para oferecer uma infraestrutura mais inclusiva, com rampas, elevadores, portas adaptadas, corredores e banheiros mais amplos. Segundo dados do TSE, aproximadamente 14 mil eleitores com deficiência ou mobilidade reduzida solicitaram transferência para votar, no primeiro turno, em uma seção com acessibilidade – um número 10 vezes maior que o registrado em 2018.
Daniela Tavares, que tem deficiência visual há 25 anos, não sente dificuldades em votar, ainda que sua seção eleitoral não seja classificada como acessível. “Se o eleitor desejar votar numa seção acessível, deve fazer a solicitação. Mas talvez o local não seja próximo a sua residência. Como já voto na mesma zona eleitoral há muitos anos, prefiro ficar perto de casa”, pondera. Além disso, ela costuma votar acompanhada por algum membro da família de confiança – permitido pela legislação eleitoral – e com fones de ouvido, para utilizar o sintetizador de voz.
Somente a partir deste ano, com a inclusão do intérprete de Libras na tela, as pessoas com deficiência auditiva que utilizam a língua de sinais contarão com um recurso direcionado especificamente a elas. Para Francisco Nascimento, que faz parte da comunidade surda, o problema vai além da implementação de novas tecnologias. Em seu local de votação, os mesários e outros profissionais que auxiliam os eleitores não usam Libras para se comunicar. “Normalmente, eles apontam com as mãos e fazem gestos para prestar informações ao eleitor surdo. As pessoas têm essa ignorância no assunto e eu sinto muitas barreiras”, avalia.
Segundo a já citada Pesquisa Nacional de Saúde, realizada pelo IBGE em 2019, dentre as pessoas com 5 anos ou mais que não conseguiam ouvir de modo algum, 35,8% podiam se comunicar em Libras. É um dado importante para entender como a surdez é plural e, nesse sentido, como a acessibilidade também deve ser. Por isso, além das legendas, é importante que conteúdos político-eleitorais contem com intérprete de Libras para contribuir com o acesso à informação de pessoas com deficiência auditiva – um recurso não exclui o outro, pois, quanto mais acessibilidade, mais pessoas podem ser incluídas. De acordo com Nascimento, quando o vídeo possui legenda, acaba sendo mais fácil de assistir. No entanto, sua avaliação é de que, por conta da velocidade do texto, não é tão acessível quanto o intérprete. Também é essencial que os produtores de conteúdo se atentem ao tamanho da janela dos intérpretes: “Às vezes, quando a janela é pequena, corta o movimento que o intérprete está fazendo com o sinal. Aí eu não consigo entender a mensagem, desisto de assistir e desligo”, conclui.
A Justiça Eleitoral disponibilizou um simulador de votação. Nele, é possível votar exatamente como se estivesse utilizando a urna eletrônica, incluindo os novos recursos de acessibilidade.
O 1º turno das eleições será em 2/10/2022, domingo. Se houver 2º turno, este será realizado em 30/10/2022, também domingo.