Comida africana na cidade do Rio de Janeiro não é algo trivial. Por isso, os restaurantes africanos que surgiram nos últimos dez anos são novidades nos circuitos gastronômicos da cidade. Hoje temos o Zungu − Guia de Gastronomia Preta, que mapeia esses empreendimentos e oferece 20 opções para quem quer comer fora de casa. Mais do que uma opção ocasional para o almoço de domingo, esses locais são pontos de articulação de pessoas negras e hubs de ideias afrodiaspóricas no Rio. Na minha pesquisa de doutorado, venho estudando como a gastronomia carioca, com esses restaurantes, vem se (re)africanizando.
No Zungu, porém, prevalece a culinária afro-brasileira, com cardápios de comidas típicas e pratos autorais referenciados nessa tradição. Comida africana (ou seja, pratos típicos de países do continente africano), são poucos os que oferecem. Encontramos no Dida Bar e Restaurante (Praça da Bandeira), no Afro Gourmet (Grajaú) e na Cozinha Nigeriana da Latifa, na Feira da Glória. No Quilombo Cultural Urbano Casa do Nando comemos cachupa (prato cabo-verdiano), às sextas-feiras, e mufete, nos sábados. Tenho notícias da inauguração de um restaurante congolês na região da Central do Brasil, na Rua Visconde da Gávea, 80, chamado Chez Mamma. Mas ainda não fui conferir.
Alguns pratos africanos são adaptados ao paladar carioca, o que em geral significa diminuir a pimenta. Nesses restaurantes comemos calulu de carne seca, caril de camarão, ngombe, madesu na mbika, sakshuka, matoke, yassa poulle, arroz jollof, thieboudienne, entre outros. Na programação do Dida, tem o Jantar Africano, que homenageia, em cada edição, três países do continente. A meu ver, com boa comida, esses bares e restaurantes expandem nossas referências culinárias quando trazem outros sabores, texturas e nomes às vezes difíceis de pronunciar.
O Rio é historicamente uma cidade africanizada, algo que se observa na materialidade do espaço urbano e nas culturas de sua gente. No quesito gastronômico, porém, ficou devendo. Aqui, entre nossas comidas típicas, a feijoada carioca − prato comum às sextas-feiras em restaurantes de toda a cidade − é a nossa principal referência de afro-brasilidade.
Outro prato é o angu à baiana, típica comida de rua no Rio. Só que o nome já entrega que a iguaria vem da tradição baiana na cidade, que remonta aos fluxos migratórios de nordestinos desde meados do século XIX. Aliás, parte substancial das nossas culturas urbanas cariocas vem daí.
O angu à baiana tem a ver com a prática de mercar comidas na rua. Feito de angu e guisado de miúdos de boi, foi chamado pelo cronista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), em tom pejorativo, de “mata-fome carioca”. É uma comida associada à alimentação de operários que circulavam entre o Centro e subúrbios da cidade. Hoje, encontramos esse prato tradicional na Kaza 123 (Vila Isabel).
Para o meu doutoramento em Antropologia na UFRJ, venho acompanhando o crescimento no Rio de Janeiro desses empreendimentos de comida africana e afro-brasileira. Interessam-me as culturas urbanas de alimentação, as dinâmicas contemporâneas de consumo e de exercício político. O crescente interesse, entre pessoas negras, por tradições africanas como orientação de seus projetos de vida e os impactos disso no espaço urbano: é o pano de fundo da pesquisa que desenvolvo.
Mas isso envolve, também, pesquisa histórica em busca desses restaurantes africanos no Rio do passado. O interesse é ver como essa culinária era representada em outros contextos sócio-históricos. Aqui vou falar de dois empreendimentos dos anos 1980: o Africano e o D’África.
O Africano
O Africano funcionou em 1982 no Jardim Botânico, na Rua Lopes Quintas, 173, Zona Sul do Rio. Vera de Ogum era a chef-proprietária e, em paralelo, investia na sua carreira de cantora e compositora. Mulher preta retinta, Vera de Ogum se apresentava com turbante, guias e colares, e fazia questão de afirmar que era filha de africanos de Moçambique.
Essa origem foi usada na concepção de seu restaurante, dedicado a preparar as receitas autorais de seu pai, Narciso. As informações são dadas pela reportagem de Vivian Wyler no Jornal do Brasil (18/3/1982), que apresenta o restaurante como frequentado por gente rica e atores da vizinha Rede Globo.
“Universo da comida africana no Rio”, escreve Wyler, decorado com máscaras africanas, esteiras e “grilhões usados pelos escravos da Colônia e gentilmente cedidos a Vera pelo Patrimônio Histórico”. O espaço era ornado também com luminárias de fibra natural e bancos sem encosto, dando ao Africano uma estética de simplicidade − “quase tosca”, diz a jornalista.
O Africano era uma experiência inédita na cidade, é o que afirmam as reportagens que encontrei sobre o restaurante. Nelas, chamam a minha atenção as representações da comida africana e as referências à escravidão na ornamentação do espaço como seu diferencial. A ideia de um estilo africano autêntico prevalece e é caracterizado pelo ambiente rústico que vinha atraindo “as mais destacadas personalidades à senzala”, informou o JB, na coluna Onde Comer Bem no Rio.
A chef Vera do Ogum, por sua descendência, é apresentada como conhecedora dos “costumes africanos”. No seu restaurante, dizia-se, as pessoas teriam uma experiência folclórica. Nas peças publicitárias do restaurante, o Africano se anunciava como o primeiro restaurante africano do país. “Pela primeira vez na história”, segundo o jornal O Globo, “ouve-se falar em comida africana entre nós”.
Hoje, é inaceitável um restaurante com essas representações do Africano de Vera de Ogum. A ideia de “almoce e jante como um rei na senzala”, tão usada pelo empreendimento em 1982 para atrair personalidades cariocas, seria certamente rechaçada em nosso contexto. Você que me lê, tente imaginar um restaurante oferecendo uma experiência gastronômica de senzala no Jardim Botânico atualmente, num ambiente “rústico”, com “grilhões de escravos” nas paredes. Se essa imagem causa algum espanto em você, é porque, passados esses anos, graças às lutas dos movimentos negros, avançamos nas discussões sobre representação de culturas negras e memória da escravidão no Brasil.
Defendo que a crescente busca por uma África ancestral que vem mobilizando pessoas negras atualmente implica também dinâmicas de consumo e articulação política. É nesse contexto que se forjaram, nos últimos anos, espacialidades urbanas que promovem tradições africanas e afro-brasileiras, e que servem de ponto de encontro para essas pessoas. Valorizar as culturas negras em todos os seus aspectos é o imperativo desses espaços. No final dos anos 1980, para quem circulava pela Lapa, o Bar e Restaurante D’África era esse point africano do Rio de Janeiro.
Bar e Restaurante D’África
Quem passa nos dias atuais pela Rua André Cavalcanti, 58, na Lapa, talvez não saiba que ali, em meados dos anos 1980, funcionou o Restaurante D’África. Era, naquele período, o único restaurante africano da cidade. O letreiro luminoso e os ritmos que ecoavam, relatam as crônicas da época, sinalizam que ali era um espaço de cultura afrodiaspórica.
O Jornal do Brasil (7/12/1986) não demorou para anunciar aquela região como uma “Pequena África” no Centro. Isso porque, ali, se concentravam muitos universitários africanos que vinham estudar no Brasil. Além dos estudantes, havia um turismo consolidado. Os hotéis do entorno recebiam em média 200 pessoas por mês, de países como Angola, São Tomé, Guiné-Bissau, Zâmbia e Costa do Marfim, segundo o JB.
O Restaurante D’África era o espaço de encontro desse pessoal, mas também da comunidade negra carioca interessada no cardápio e nas músicas africanas da época. Um dos pratos era a gingubada, considerada a “feijoada do Benim”, que tinha como ingrediente principal o amendoim. E tinha também as muambas. O D’África, aliás, era ponto certo da intelectualidade do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN).
O dono era João Santos, conhecido como João da África, brasileiro que morou em Angola e Moçambique. João tinha também uma agência especializada em turismo africano. Ele trazia muita gente ao Rio de Janeiro, de forma que era conveniente ter um espaço onde essas pessoas se sentissem em casa.
Como point africano carioca, o D’África foi importante também para a cena musical dos anos 1980. Ele abriu espaço para o reggae e outros ritmos, promoveu o trânsito de artistas africanos para o Rio de Janeiro. Por lá passaram Nabby Clifford, Afra Sound Stars, por exemplo. Elza Soares também foi uma de suas atrações.
Depois de ficar um tempo fechado, o restaurante foi vendido a um português que abrasileirou o espaço. Botou comida de petiscaria, nada mais comum nos bares da Lapa. Não demorou muito para fechar de vez. Anos depois, no mesmo local, funcionou o Buraco da Lacraia.
Comida africana no Rio de Janeiro, hoje
O ponto é o seguinte: se a comida afro-brasileira é cotidiana nas casas, os espaços de comida africana são novidades em bares e restaurantes do Rio de Janeiro. Neles comemos pratos típicos de Moçambique, Angola, Camarões, Senegal, Nigéria, entre outros países. Isso não só amplia nossas experiências gastronômicas, como também pode enriquecer a nossa culinária afro-brasileira. Minha aposta é essa. Com isso vêm outros ingredientes, modos de fazer, combinações e sabores que não são triviais aos nossos gostos.
Outro aspecto que considero importante é que esses restaurantes são espaços de sociabilidade negra na cidade. Como locais de encontro, possibilitam articular e compartilhar referências da cultura negra em todos os aspectos, não só o gastronômico. Moda, música, literatura, política, filosofias, ou seja, um universo de linguagens e expressões segmentado pela negritude. Para a comunidade africana que vive no Rio de Janeiro, também é oportunidade para comer alguns pratos típicos de seus países feitos por chefs brasileiras. Pessoas como Dida Nascimento e Dandara Batista, que viajam por países africanos para aprender como fazer seus pratos. Ou o restaurante angolano da chef Lica, na Maré.
Acredito que o crescimento de restaurantes afros seja um caminho de reelaboração da gastronomia carioca. Embora existam referências de restaurantes africanos na memória urbana do Rio, é a primeira vez que se tem notícias de um guia de gastronomia afro. O Zungu, por essa razão, é um documento histórico. Ele mostra que, cada vez mais, a gastronomia carioca está se (re)africanizando. Deixo aqui o convite.
Assista ao vídeo do D’África no site Cultne.
Rodolfo Teixeira Alves é antropólogo e jornalista em formação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). É doutorando em Antropologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) da UFRJ e pesquisador vinculado ao Laboratório de Estudos da Cidade (Urbano) do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs). Atualmente desenvolve o projeto de pesquisa “Alimentação e Cidade: Circuitos de Restaurantes Afros na Cidade do Rio de Janeiro”. (Contato: alves.rodolfot@gmail.com)