A presidente da Fundação Oswaldo Cruz e professora honoris causa da UFRJ, Nísia Trindade, defendeu a necessidade de mudanças na comunicação com a sociedade por quem produz conhecimento e inovações, aprofundando as relações entre ciência e democracia. A declaração ocorreu nessa segunda-feira (4/4), no auditório do Centro Cultural Professor Horácio Macedo, o tradicional Roxinho, durante a realização da aula magna, que marca a reabertura das atividades presenciais na instituição.
Na exposição que realizou por uma hora, Trindade destacou que as instituições ligadas à saúde, educação, ciência e tecnologia devem enfrentar sete desafios, que se evidenciaram ao longo de dois anos de enfrentamento da pandemia à frente da Fiocruz. O primeiro deles é a necessidade de investimentos em toda a área para trazer inovações e reduzir as desigualdades globais no campo científico, permitindo a transformação social pelo acesso universal às tecnologias de saúde. “As vacinas não foram criadas do dia para a noite, como procuram difundir. São investimentos de, pelo menos, cinco anos”, ressaltou ela, lembrando que isso possibilitou as bases consolidadas de conhecimento, com pesquisas realizadas por universidades e laboratórios, para se chegar a uma pronta resposta de combate à doença que se espalhou pelo mundo.
O segundo ponto relevante, segundo a pesquisadora, é a importância de se reorientar as pesquisas e o desenvolvimento tecnológico no campo biomédico para o interesse público em vez de para o interesse de mercado. Diretamente relacionado ao anterior, o terceiro desafio estaria relacionado à urgência de se descentralizar a produção de bens de saúde (vacinas, testes de diagnóstico, medicamentos, entre outros insumos), que está concentrada em poucos países. O Brasil, por exemplo, é um dos poucos casos em que ocorreu transferência de tecnologia na produção de vacinas, destacou a presidente da Fiocruz.
Essencial também é a relevância de se fortalecer os sistemas de saúde e proteção social, outro desafio apontado por Nísia Trindade, que crê não ser possível pensar em tecnologia e inovações fora desses âmbitos. O Brasil tem o maior sistema universal de saúde do planeta, que corresponde a 9% do PIB e gera, direta ou indiretamente, 20 milhões de postos de trabalho, além de ser uma área-chave para a 4ª Revolução Tecnológica. “A universalização do acesso reduz as desigualdades sociais. É preciso derrubar as barreiras que causam vulnerabilidades ao país”, apontou na exposição.
O quinto desafio é a necessidade de fortalecimento da governança global e o papel do multilateralismo. Trindade lembrou que, em maio, ocorrerá a Assembleia Mundial de Saúde, quando estará em discussão um tratado internacional sobre pandemias, que colocará em debate as inequidades, o direcionamento das pesquisas, as ações de vigilância em nível global, o compartilhamento de dados, sem prejuízos para os países doadores de informações que precisam ter em troca investimentos em ciência e tecnologia.
Do ponto de vista da presidente da Fiocruz, é fundamental abordagens interdisciplinares diante de desafios cada vez mais complexos. Ela se valeu de uma reflexão do sociólogo Anthony Giddens de que futuras pandemias estarão relacionadas às mudanças climáticas, a fatores climáticos, mas também à transformação dos meios de comunicação, para expor o sexto desafio. “A informação e a comunicação formam a percepção da pandemia e orientam a ação dos governos”, disse a pesquisadora.
E, por fim, Nísia Trindade destacou a necessidade de mudanças no paradigma de comunicação da ciência. Mais uma vez, ela recorreu a um outro sociólogo, no caso, Robert Merton. Segundo ele, diante dos ataques à ciência, é sempre necessária uma autocrítica para avaliar as relações entre quem a produz e a sociedade. A pesquisadora esclareceu que só em contextos democráticos prevalece o próprio ethos da ciência de não-existência de uma verdade absoluta.
Trindade refuta a ideia de que devemos acreditar na ciência. Para ela, a crença está em valores, para os religiosos está na fé em um deus. “Na ciência é preciso confiar. O dilema de nossa sociedade é de confiança: na ciência e nas suas instituições. Na verdade, estamos vivendo um grande conflito de culturas, querendo mostrar a superioridade da ciência quando deveríamos destacar a adequação da ciência para responder os desafios”, disse.
A presidente da Fiocruz acredita que há uma integração entre todos os desafios que apresentou durante a aula magna sem que haja uma sobreposição de um em relação ao outro. “Mas de nada adianta ter um parque tecnológico fantástico e ficar fechado sem olhar os usos dessa tecnologia e a comunicação com a sociedade. A gente precisa de investimentos em pesquisa básica. Mas, até para a valorização da ciência, precisamos mostrar tudo o que o conhecimento, através da ciência, permite à sociedade”, finalizou.
Aula Magna
Símbolo do início das atividades acadêmicas a cada ano letivo nas universidades, a aula magna é privativa de reitores, que podem convidar outras autoridades para proferi-la. “Magna” vem da forma de tratamento dado aos reitores (magnífico), mas ela também é chamada de “Aula Sapiente”, por sua tradição de ser ministrada por um sapiente renomado, com notória respeitabilidade nos meios culturais e acadêmicos.
Transmitido ao vivo pela Coordenadoria de Comunicação, o evento pode ser revisto pelo canal UFRJ_oficial no YouTube. Aqueles que estiveram no Roxinho, porém, puderam participar de sorteios de livros cedidos pela Editora da UFRJ e concorrer a visitas guiadas ao Restaurante Universitário.
Para a reitora da UFRJ, Denise Pires de Carvalho, a aula magna proferida mostrou a importância de se realizar investimentos na ciência, tecnologia e inovação. “Sem isso, não há produção de conhecimento. O Brasil acaba permanecendo como um país periférico e dependente de importação de alta tecnologia. Já temos capital humano e até parque de equipamentos, de instituições capazes de produzir vacinas, por exemplo. Só falta mais investimento para o desenvolvimento do setor industrial da área da saúde. Sem investimentos, nós vamos retroceder.”