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Pelo Campus Sociedade

Carolina Maria de Jesus: a mulher negra que criou mundos do quarto de despejo

Escritora, mãe, mulher, negra e doutora são algumas formas de definir a última homenageada da série Nossas Honoris

Com uma grande festa, em fevereiro de 2021, a escritora Carolina Maria de Jesus foi agraciada com o título de doutora honoris causa in memoriam pelo Conselho Universitário (Consuni) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ela, que viveu parte da vida como catadora de papel moradora da favela do Canindé, zona norte de São Paulo, produziu uma obra literária que se tornou referência da luta antirracista, conforme demonstra o parecer que fundamentou a concessão do título. 

Nascida em 14/3/1914, em Sacramento, cidade próxima de Araxá e da região do Triângulo Mineiro, Carolina ingressou aos 7 anos no Colégio Allan Kardec, de orientação espírita, onde ficou até o 2º ano do ensino fundamental. Até então, usava o apelido Bitita. Lá o deixou para trás e aprendeu em pouco tempo a escrever e ler. Era o começo da sua relação com as palavras. Com o tempo, tomou gosto por ambos. 

No entanto, sua trajetória na escrita ainda demoraria: apenas depois dos 30 anos, quando se mudou de Minas Gerais para São Paulo após a morte da mãe, começou a encontrar no papel não só o sustento, mas também um refúgio. Filha de João Cândido e Dona Cota, analfabetos, em 1937, aos 33 anos e grávida, Carolina passou a viver na favela do Canindé, zona norte da capital paulista, e a se sustentar como catadora de papel. 

Carolina posa para a foto enquanto segura um chapéu. Foto em preto e branco.
Carolina Maria de Jesus em 1963. | Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo

Aproveitava os cadernos usados que recolhia para registrar o cotidiano em que vivia. Com o apoio do jornalista Audálio Dantas, em 1958, Carolina publicou o primeiro e mais famoso livro, Quarto de Despejo, a partir de anotações em vinte cadernos. O sucesso da publicação lhe permitiu mudar para Santana, bairro de classe média. Três anos depois, publicou o romance Pedaços de Fome e o livro Provérbios. Ela nunca quis se casar e teve três filhos, todos frutos de relacionamentos diferentes. Morreu em fevereiro de 1977, aos 62 anos, de insuficiência respiratória. Outras seis obras foram publicadas após sua morte, compiladas a partir dos cadernos e materiais deixados pela autora.

Que suplicio catar papel atualmente! Tenho que levar a minha filha Vera Eunice. Ela está com dois anos, e não gosta de ficar em casa. Eu ponho o saco na cabeça e levo-a nos braços. Suporto o pêso do saco na cabeça e suporto o pêso da Vera Eunice nos braços. Tem hora que revolto-me. Depois domino-me. Ela não tem culpa de estar no mundo.

Refleti: preciso ser tolerante com os meus filhos. Êles não tem ninguem no mundo a não ser eu. Como é pungente a condição de mulher sozinha sem um homem no lar.

Aqui, todas impricam comigo. Dizem que falo muito bem. Que sei atrair os homens. (…) Quando fico nervosa não gosto de discutir. Prefiro escrever. Todos os dias eu escrevo. Sento no quintal e escrevo.

(Carolina Maria de Jesus. Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, 1960)