A pesquisadora Flavia Gomes, do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ, foi eleita presidente da Sociedade Internacional de Neuroquímica (International Society for Neurochemistry – ISN, em inglês) para o biênio 2021-2023. Desde sua criação, em 1965, é a primeira vez que um acadêmico da América Latina preside a instituição.
Ciência que estuda a relação entre a estrutura química de certas moléculas e suas atividades no sistema nervoso central, a Neuroquímica é uma área da Neurociência. No Brasil, esse campo de estudo teve como um dos pioneiros o cientista Fernando Garcia de Mello, professor emérito da UFRJ, investigando o funcionamento molecular do sistema nervoso a partir de experimentos na retina.
E o que faz a ISN, sociedade agora presidida pela professora Flavia Gomes? Seu objetivo é promover, no mundo, a neurociência celular (que estuda a constituição e função das células no sistema nervoso) e molecular (que trata das moléculas e vias de comunicação entre as células) e áreas relacionadas. O foco dessa sociedade científica é destacar o crescimento da área de Neuroquímica, contribuindo para a formação de recursos humanos no ramo, especialmente de pesquisadores em estágios iniciais da carreira. Com atuação em quase 50 países distribuídos pelos cinco continentes e por meio de financiamento de projetos de pesquisa, congressos, simpósios e escolas, a ISN é responsável pela revista científica Journal of Neurochemistry, periódico tradicional na área de Neuroquímica, com foco em aspectos moleculares, celulares e bioquímicos do sistema nervoso, patogênese de distúrbios neurológicos e desenvolvimento de biomarcadores específicos de doenças.
O Conexão UFRJ conversou com a professora Flavia Gomes sobre sua missão de presidir a Sociedade Internacional de Neuroquímica. De acordo com a pesquisadora, o fato de ela ser da América do Sul é um desafio “bem maior” ao que o de ser mulher.
Conexão UFRJ: Qual a importância de a América Latina ter seu primeiro representante no mais alto posto dessa sociedade científica?
Flavia Gomes: A América do Sul tem grupos pioneiros na área de Neuroquímica. Alguns deles se inseriram na ISN, mas se distanciaram com o tempo. Em 50 anos, foi muito pequeno o número de pesquisadores da América Latina participantes do seu conselho deliberativo tomador de decisões. Um dos pioneiros na área e na inserção na ISN, vale ressaltar, foi o professor Fernando Mello, emérito da UFRJ. Desde sua criação, a ISN foi dirigida por 27 presidentes, todos da América do Norte, Ásia, Austrália e Europa. A presença de uma pesquisadora da América Latina na presidência, eleita por votação, sinaliza uma mudança de cenário. Mostra uma instituição diversa, aberta à comunidade científica, de fato internacional. Ainda, contribui para a elaboração de políticas de crescimento científico e de promoção da Neurociência em regiões outras que não os países de “primeiro mundo”. Além disso, contribui para a visibilidade e inserção dos pesquisadores brasileiros (e da América Latina) na comunidade científica internacional.
Conexão UFRJ: Quais serão suas diretrizes de trabalho?
Flavia: Tornar mais acessíveis aos jovens pesquisadores as iniciativas da ISN que envolvem principalmente formação de recursos humanos qualificados na área, aumentando a internacionalização. Aumentar a visibilidade da ISN, não só na América Latina, mas em países onde a Neuroquímica ainda é incipiente ou em locais de ciência de ponta, mas sem inserção da instituição. Assim como estimular a participação dos pesquisadores da América Latina na organização de Escolas de Neuroquímica.
Conexão UFRJ: Pelo que gostaria de ser lembrada?
Flavia: Pela minha contribuição na criação de políticas de formação de recursos humanos e investimento em jovens pesquisadores.
Conexão UFRJ: Como mulher, acredita que a academia ainda tem o que avançar? Como você enxerga isso no Brasil e mundo afora?
Flavia: Considero que o ponto de eu ser da América do Sul seja um desafio bem maior do que o de ser mulher. No Brasil, as mulheres são maioria na produção do conhecimento, especialmente em posições de bolsistas de iniciação científica e pós-graduação. No entanto, a participação feminina em cargos de chefia, gestão e bolsistas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) diminui progressivamente à medida que a carreira avança. Hoje, o CNPq tem aproximadamente 25% de mulheres bolsistas 1A.
Abro aqui um parêntese: a questão de gênero deve ser analisada com muito cuidado (assim como qualquer outro viés) e, especificamente no campo acadêmico, jamais dissociada do mérito, que, certamente, deve ser o principal norteador do crescimento profissional. No entanto, me pergunto se não houve mulheres, nos últimos cem anos de desenvolvimento científico da sociedade brasileira, que fossem meritórias de cargos e posições de liderança.
A situação em outras regiões pode ser ainda mais crítica do que na América do Sul e no Brasil. Criada em 1965, a ISN foi dirigida por 24 homens e três mulheres. A discriminação de gênero acontece de várias formas, a direta, mais explícita, e aquela menos evidente, que não cria oportunidade para diminuir as desigualdades, tão grave quanto a primeira. O Brasil avançou bastante na última década, mas ainda temos muitos “nichos masculinos”, dentro e fora das universidades.