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As ainda atuais ideias de Josué de Castro

Obra do cientista político e humanista que influenciou diversos estudos sobre fome e combate à miséria faz 75 anos

Em setembro, durante a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, será realizada a Cúpula de Sistemas Alimentares. O evento, em decorrência da pandemia da COVID-19, ocorrerá de forma virtual e pretende debater maneiras de acelerar esforços em prol do cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) por meio da transformação dos processos envolvidos na alimentação ­− da produção no campo até o processamento, transporte, consumo e descarte − rumo à sustentabilidade. Coincidentemente, é neste mês que serão celebrados os 75 anos do lançamento do livro Geografia da Fome, obra de Josué de Castro, que teve a biografia marcada pela atuação política no combate à fome, e o aniversário do instituto que leva o nome do médico pernambucano – Instituto de Nutrição Josué de Castro (INJC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Com as mudanças climáticas a olhos vistos, há muito o que se debater: os extremos das temperaturas (altas e baixas), o estresse hídrico, o aumento das desertificações e diversos outros processos que afetam a alimentação. Para mitigar as consequências das alterações bruscas no clima do planeta é importante se repensar como produzir os alimentos, dando, por exemplo, importância à agricultura familiar ou redução do consumo dos alimentos ultraprocessados, prejudiciais à saúde. Não à toa a Cúpula de Sistemas Alimentares foi anunciada pelo secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, no Dia Mundial da Alimentação, em outubro passado.

Traduzida em mais de 25 idiomas, a publicação Geografia da Fome é multidisciplinar e se destaca pelas ideias que deram visibilidade ao combate à fome e levaram Josué de Castro à presidência do conselho executivo da Agência para a Alimentação e a Agricultura (Food and Agriculture Organization − FAO) da ONU, nos anos 1950, e a três indicações ao Nobel — da Medicina (1954) e da Paz (1963 e 1970). Castro foi o primeiro diretor do INJC, que, ao completar 50 anos, adotou o nome do médico.

Em mais uma homenagem a ele, que influenciou diversos estudos sobre a fome e o combate à miséria, e à instituição que ajudou a criar, serão exibidas, pelo YouTube, em 13/9, uma sessão solene com a presença de autoridades e convidados, palestras e atividades culturais.

De acordo com a coordenadora do Tributo ao INJC − 75 Anos de História, professora Elizabeth Accioly, Geografia da Fome e os estudos de Josué de Castro ainda são muito atuais. “A obra faz uma análise de causas e consequências da fome no Brasil, segundo regiões estabelecidas pelo autor, com base em características geopolíticas, culturais e sociais à época”, disse ela, acrescentando que o livro trouxe inovações metodológicas, conceituais e temáticas, articulando conhecimentos de medicina, geografia e ciências humanas e sociais.

Para a professora, a crise sanitária provocada pela pandemia da COVID 19 agravou a insegurança alimentar no país, que pode ser descrita por distintos níveis de falta de acesso a alimentos em quantidade e qualidade, de forma regular e permanente pela população. “A estimativa é de que o Brasil tenha retrocedido 15 anos no combate à fome nos últimos cinco anos, chegando a patamares de insegurança alimentar próximos aos observados em 2004. O programa de combate à fome implantado após essa data culminou com a exclusão do Brasil do mapa da fome das Nações Unidas, em 2014. Mas a crise alimentar coloca em risco as populações social e biologicamente mais vulneráveis e exige medidas estruturais que possam minorar seus efeitos, ameaçando o país a voltar ao mapa da fome”, enfatizou Accioly.

Embora Josué de Castro também reconhecesse a necessidade do cuidado com o meio ambiente como matriz para a produção de alimentos, segundo a professora, o médico ressaltou que a fome, “a maior calamidade social”, era resultado de processos políticos, econômicos e históricos, não sendo determinada por catástrofes naturais, como a seca, mas sim fruto da concentração de riquezas, ou seja, das omissões humanas, pois as condições científicas e tecnológicas para erradicar o mal já estavam, e continuam, disponíveis. Reconhecida nos quatro cantos do mundo, mas esquecida por muito tempo em seu país natal, a obra de Castro, de acordo com Accioly, vem sendo revisitada nesses difíceis tempos, reconhecendo-se o valor do pensamento do cientista social e humanista para entender a problemática da fome e das desigualdades sociais. Em consonância com as ideias de Castro, há a expectativa de que a Cúpula dos Sistemas Alimentares da ONU realize progressos em todos os 17 ODSs por meio de uma abordagem holística de sistemas alimentares, que promova a interconexão desses sistemas aos desafios globais, como fome, mudança climática, pobreza e desigualdade.