Em 11/2 celebra-se em todo o mundo o papel de meninas e mulheres na ciência. Porém, no dia a dia, as mulheres, principalmente as negras, ainda sofrem a influência do machismo e do racismo no fazer científico. O projeto de extensão As incríveis cientistas negras: educação, divulgação e popularização da Ciência, parceria entre o Instituto do Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (Nutes) e o Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet/RJ), promove e divulga a pesquisa produzida por meninas e mulheres pretas.
Ana Lúcia Nunes, professora do Nutes e uma das coordenadoras, conta que o projeto surgiu em julho de 2019, por um convite para participar de uma feira de ciências promovida pelo Espaço Ciência Viva (ECV). Naquele momento, o Núcleo de Estudos de Gênero e Relações Étnico-raciais na Educação Audiovisual em Ciências e Saúde (Negrecs), do Nutes, pesquisava mulheres negras cientistas, doutoras e atuantes no programa de pós-graduação. Daí surgiu uma inquietação a respeito de uma mesa sobre grandes mulheres cientistas não incluir nem negras, nem indígenas
Até 2020, a iniciativa do projeto era do Cefet, mas, com o afastamento da coordenadora Luciana Espíndola, surgiu a necessidade de reconfigurá-lo. “Eu então submeti o projeto na UFRJ. Enfrentamos alguns entraves burocráticos que, na verdade, são expressão do racismo estrutural e de como ele se expressa no meio acadêmico. Desde o início da pandemia, nós não pudemos mais fazer atividades ao vivo. Nossas ações em 2019 foram palestras e debates em escolas públicas, divulgando o trabalho das pesquisadoras negras e promovendo essas meninas negras, estudantes de ensino médio, como divulgadoras científicas”, explica Nunes.
Hoje as atividades remotas englobam a divulgação científica nas mídias sociais, participação em debates, oficinas, realização de vídeos, de um site próprio e um minicurso para professores de Macaé, tudo realizado por uma equipe de professoras e estudantes. “Recentemente eu fiz um chamado para extensionistas para ampliarmos o grupo, que agora é composto por alunas da unidade Maria da Graça do Cefet e da UFRJ. Somos mais de duas dezenas de meninas e mulheres negras na missão de divulgar o trabalho de cientistas negras e formar jovens negras para a divulgação científica.”
Entre as cientistas que fazem parte da iniciativa estão Mariana Souza, aluna do ensino médio no Cefet/Maria da Graça, e Thamiris Bernardo, estudante de Engenharia Elétrica na UFRJ. Ambas encontraram no projeto a oportunidade de se aproximar mais do fazer científico.
“Eu estudei a maior parte da minha vida em escolas públicas onde eu sempre fui incentivada a estudar, apesar de todas as dificuldades, e desenvolvi desde cedo um apreço pelo estudo e pela educação”, afirma Souza, que está no projeto de extensão desde o início. A jovem de 17 anos conta que foi a partir da iniciativa que começou a se interessar pela ciência e pela divulgação científica, já que sempre viu a área como estereotipada com a imagem do homem branco.
“Sabemos que mulheres negras também são cientistas e produzem ciência. Quando a gente limita ciência como sendo pertencente a apenas um grupo, ao grupo de homens brancos de classe média, nós acabamos impedindo e desanimando as pessoas que não se encaixam nesse perfil de fazer ciência e ter essa oportunidade”, diz.
Bernardo, por sua vez, lembra que desde a infância amava tudo que envolvesse ciência e matemática, buscando sempre entender o porquê das coisas. Acabou encontrando no Cefet a chance de ter mais contato com a área de tecnologias e se formou como técnica em automação, seguindo posteriormente para a Escola Politécnica. Ela conta que conheceu o Mulheres Negras na Ciência ainda na fase embrionária, mas só pôde se vincular a ele na UFRJ.
“Desde então, venho estreitando ainda mais o relacionamento com esse projeto que, para mim, é muito importante, tanto individualmente, seja abrindo portas, me mostrando caminhos dentro da Academia ou fornecendo outras perspectivas de vida, quanto socialmente, comunicando a importância e o papel da mulher negra cientista para fora dos muros da academia.”
Mas como se parece um cientista?
Nas mídias os cientistas são sempre muito parecidos: homens, brancos, vindos da classe média ou alta, muitas vezes com temperamento difícil e, até mesmo, antiético. No entanto, o fazer científico é extremamente amplo e precisa ser tão diverso quanto a própria sociedade. Segundo Nunes, hoje a quantidade de mulheres diminui à medida que se sobe na hierarquia, tanto nos cargos quanto no reconhecimento científico e acadêmico. As mulheres continuam como minoria numérica em algumas áreas, como ciência e tecnologia.
“Porém, se você considera as ciências no geral e a universidade como um todo, não temos problema de gênero. Não faltam mulheres, se você considerar que ‘mulher’ é uma mulher branca. Agora, se você considerar que é também uma mulher negra, nós temos um grande problema”, salienta a professora.
A docente revela que, por muito tempo, não se viu como cientista. Formada em Jornalismo e seguindo a vida acadêmica em Comunicação Social, sempre trabalhou com a interface entre a área e a educação. Apenas quando participou do Espaço Ciência Viva se viu reconhecida como produtora de ciência. Atualmente, ela defende a ciência que foge dos cânones europeu e ocidental.
“A ciência está na vida. Está em tudo. Está na curiosidade científica do meu filho de 1 ano. Está no fazer diário. Eu quero imaginar que, um dia, nós ainda teremos tantas mulheres negras cientistas quanto há mulheres negras em nosso país. O que almejamos é proporcionalidade. Se somos a maioria da população, por que não somos a maioria na ciência?”, indaga.
Bernardo também defende que a questão é de proporcionalidade. Durante todo o curso técnico na área tecnológica, não teve sequer uma professora negra. Para ela, a falta de representatividade traz um sentimento de insegurança no caminho da ciência.
“Não deveria ter apenas uma imagem semelhante a nós lá dentro da Academia, e sim várias. O que eu quero para meu futuro é ser segura perante minha presença no âmbito ‘cientista’, na Academia, no lugar em que quero criar minha vida e minha história. Que a insegurança nem pense em existir para as outras meninas que estão por vir e que procuremos não nos ver nesses espaços apenas como um ponto estranho no meio da imensidão branca e masculina!”, ressalta a estudante da UFRJ.
Souza concorda que, quando a ciência é limitada como pertencente a apenas um grupo de homens brancos e de classe média/alta, pessoas que não estão nesse perfil acabam se sentindo impedidas de entrar na pesquisa.
“Eu espero que, como sociedade ,possamos um dia reconhecer a existência de mulheres negras na ciência e que se deem os créditos a elas de tudo que produziram,já que na maioria das vezes são invisibilizadas e apagadas. Por isso é tão importante falarmos de mulheres negras na ciência: o que elas fizeram, o que elas fazem e o que elas irão fazer”, enfatiza a estudante.
A política de cotas e o fortalecimento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) mudaram a cara do corpo discente da graduação, aumentando a diversidade racial e social nos campi. A extensão das cotas para os programas de pós-graduação também impactou na pesquisa realizada pelos discentes − um setor da Universidade, contudo,que ainda continua sendo um “bastião do espaço branco”.
Mesmo com uma resolução recentemente aprovada de cotas para a docência, existe muita resistência à inserção de professoras e pesquisadoras. “Não temos políticas de ação afirmativa nos editais de pesquisa e extensão.Então as mulheres negras acabam tendo que trabalhar dez vezes mais para competir em pé de igualdade”, conclui Nunes.
Acompanhe pelo Instagram o trabalho de Ana Lúcia Nunes, Mariana Souza, Thamiris Bernardo e de todas as cientistas do Mulheres Negras na Ciência.