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Opinião

Uma marca para docentes negras e negros da UFRJ

Alexandre Brasil Fonseca, diretor do Instituto Nutes, propõe atualizar a Minerva, com contornos mais representativos para a Instituição

Nas grandes universidades
O feijão preto não pode ingressar
Será que existem as seleções
Prêto pra cá e branco pra lá
E nas grandes reuniões
O feijão prêto é vedado entrar?
Crêio que no núcleo dos feijões
Não existem as segregações.
Os Feijões
Carolina Maria de Jesus

Em novembro de 2020, docentes negras e negros da UFRJ iniciaram mobilização visando reunir esse pequeno grupo dentro da instituição. Um levantamento a partir do Censo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) de 2019 identificou que 15,8% dos professores das universidades federais são negras/os . Caso confirmado o percentual na UFRJ, o teto desse grupo seria de pouco mais 650 professores entre os mais de 4.200. Até o momento cerca de 80 docentes participam da iniciativa, que tem como objetivo a construção coletiva de ações para fazer frente a expressões do racismo na Universidade e para servir de suporte mútuo.

A partir do emblema símbolo da UFRJ, criado em 1935, com a figura da deusa romana das artes e da sabedoria, Minerva, foi feita uma proposta, construída de forma coletiva a partir da troca de mensagens eletrônicas. Optou-se por se manter na imagem o suporte na parte inferior, que parece ser um ornamento barroco em estilo vitoriano, numa referência à tradição europeia-colonial que esteve na origem e permanece até os dias de hoje na Universidade, marca de sua branquitude.

No lugar da Minerva, com as cobras e a efígie da cabeça de Medusa em sua armadura, foi colocada a imagem de uma mulher preta com colares, brinco, turbante e pintura corporal nas costas e no ombro com um padrão Karajá, etnia originária da região dos rios Araguaia e Javaés, que abrange atualmente os estados de Goiás, Mato Grosso, Tocantins e Pará.

Foram mantidas a representação da constelação do Cruzeiro do Sul e a silhueta do Morro do Corcovado, elementos que remetem ao nosso território usado e que no desenho estão na direção para a qual a mulher olha.

No local em que aparece a ponta de uma lança optou-se pela inclusão de um ramo de flores: camélias. No turbante da mulher também há camélias em uma das dobras. Essas flores foram adotadas pela Confederação Abolicionista, criada por José do Patrocínio e André Rebouças em 1883, como símbolo da luta por liberdade e de enfrentamento à escravidão.

No arco superior do emblema em formato oval foi incluído grafismo padrão džawaražoriwa (onça) dos Asurini, vetorizado a partir de desenho a mão livre de Džakundá e coletado por Berta Ribeiro. As pinturas e padrões gráficos têm um importante e amplo papel para as comunidades indígenas. Um dos aspectos envolvidos é que os processos de pintura estão marcados por práticas de ensino-aprendizagem no interior da comunidade e que envolvem os mais novos e os mais velhos. A prática de pintura corporal é um tipo de processo educativo.

Em vez de segurar uma lança, como faz Minerva, a personagem tem em suas mãos um chocalho indígena denominado Mbaraká, usado amplamente pelas Américas com o nome de “maraca”, instrumento musical. Na mitologia Guarani Nhadeva, por meio dos sons emitidos pelo Mbaraká, ocorre a circulação da sabedoria. Os Guaranis ocupam terras que abrangem regiões que hoje fazem parte da Argentina, do Paraguai e do Brasil. A introdução desse elemento é uma referência à nossa Pátria Grande, à nossa Amefricanidade.

O ramo de camélias que está nas costas da mulher também representa uma luta do passado, mas que ainda se faz necessária. Sua presença no logotipo é uma alusão à adoção de postura antirracista que precisa ser assumida por todas as pessoas na atualidade. A flor surge do meio da moldura, brota de uma fresta. Algo que nos interessa é essa beleza que surge de locais não esperados. Essa esperança que nasce diante das dificuldades. O caminho para que isso se concretize passa por superar, de forma conjunta, os muitos desafios; passa, como afirma a educadora Catherine Walsh, por “pensar-sentir-actuar desde y con los gritos y las grietas en América Latina”. Dessa forma, teremos forças e condições para construir novas formas de re-existência.

Uma nova marca para a UFRJ é proposta por docentes negros e negras. O texto descreve seus traços

Ao passar o ano de comemoração do centenário da UFRJ, fica a esperança de que tenhamos em 2021 mais avanços concretos, como no caso da resolução do Conselho Universitário (Consuni) aprovada recentemente que aperfeiçoou o sistema de cotas para os concursos docentes. São necessárias novas formas de ser e agir fundamentadas em postura antirracista – este é um dos elementos que tem motivado a reunião desse grupo de docentes. Em fevereiro será realizada a terceira reunião e a expectativa é de que possamos apresentar contribuições concretas para que tenhamos uma UFRJ mais próxima da realidade brasileira e com melhores condições de oferecer uma educação de qualidade, pública, gratuita, laica e socialmente referenciada.

Caso deseje participar, clique aqui, acesse o cadastro para mobilização de docentes negras e negros da UFRJ e receba mais informações.

O autor | Foto: Diogo Vasconcellos (Coordcom/UFRJ)

*Alexandre Brasil Fonseca é sociólogo, professor associado e diretor do Instituto Nutes de Educação em Ciências e Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Textos que inspiraram esta reflexão

GONZALEZ, Lélia. 1988. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, jan/jun.

KARAJÁ, Txiarawa. 2016. Conhecimentos da minha cultura. In: DUNCK-CINTRA, Ema Marta; NAZARIO, Maria de Lurdes; PIMENTEL DA SILVA, Maria Socorro. Diversidade cultural indígena brasileira e reflexões no contexto da educação básica. Goiânia: Editora Espaço, 2016, p. 113-124.

RAMOS, Alberto Guerreiro. 1995. Patologia social do “branco” brasileiro. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.

ROSUMEK, Gisele Baumgarten; SOUSA, Richard Perassi Luiz de; Análise das identidades visuais das primeiras universidades brasileiras, p. 4565-4577. In: Anais do 12º Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design [Blucher Design Proceedings, v. 9, n. 2]. São Paulo: Blucher, 2016. DOI 10.5151/despro-ped2016-0393

SANTOS, Milton. 2000. O papel Ativo da Geografia: um manifesto. Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, n. 9, pp. 103-109, jul/dez.

SILVA, Eduardo. 2003. As camélias do Leblon e a abolição da escravatura: uma investigação de história cultural. São Paulo: Companhia das Letras.

WALSH, Catherine. 2019. Pensar-sentir-actuar desde y con los gritos y las grietas en América Latina. Revista de Estudos Culturais, São Paulo, Edição 4, pp. 92-110.