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Pandemia: A história se repete como tragédia ou como farsa

Artigo de Marialva Barbosa, professora titular da ECO-UFRJ, apresenta relatos e imagens dos efeitos da gripe espanhola, no Rio de Janeiro, em 1918

Por Marialva Barbosa*

A célebre frase de Karl Marx na abertura de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, de 1852, ainda que se refira a outros contextos e à conjuntura política da França do século XIX (1), serve como epígrafe do texto que ora apresento e que traz algumas reflexões, a partir da história, sobre o terrível momento em que estamos mergulhados.

Quando eu era bem pequena, ouvia, com certo estranhamento e espanto, meu pai descrever cenas que ficaram fixadas nas suas retinas de menino: caminhões repletos de corpos, centenas, trafegando pelas ruas dos subúrbios da cidade e recolhendo a cada esquina mais corpos que eram colocados uns sobre os outros. Nas valas abertas nas ruas, outros corpos, alguns ainda agonizantes, que acabavam de ser mortos com o gesto piedoso de uma pá ou picareta que colocava fim àquelas existências. Muitas vezes escutei essas histórias e não sabia que elas tinham ficado guardadas na minha memória.

Quando agora, na segunda década de século XXI, uma nova peste tomou conta de nossas vidas – ameaçando não só nossas existências, mas os modos como nos colocamos no mundo –, imediatamente as descrições foram acionadas e se transformaram em imagens-lembrança duradouras que transformo em palavras.

As cenas descritas por meu pai eram da gripe espanhola de 1918. Ele, então um menino de oito anos vivendo no subúrbio do Engenho de Dentro, presenciara aqueles momentos e jamais esquecera. De fato, não há como esquecer nenhuma daquelas imagens.

Cento e dois anos depois, vivo um novo tempo de miséria humana, proporcionado, apenas em parte, por uma doença que ceifa vidas sem piedade. Ao tentar sobreviver numa quarentena e inspirada pela faceta de historiadora, fiz o gesto de procurar em alguns periódicos da época as imagens que ficaram imortalizadas e que poderiam revelar as ambiências e sensações de outro tempo.

Deparei-me, então, com dezenas de fotografias, publicadas não só nos jornais mais importantes da época (Correio da Manhã, Gazeta de Notícias, O Paiz, A Noite, Imparcial), mas também em revistas (Careta, O Malho, Revista da Semana). São imagens impactantes, que permitem sentir muitas das sensações que atribuíamos apenas ao nosso presente. Reproduzo aqui algumas delas.

Cada uma traz para o presente acontecimentos do passado que estamos vivendo novamente, mostrando que a história serve para muitas coisas se, a partir de acontecimentos monstruosos vivenciados, ações forem produzidas no sentido da transformação do mundo e dos homens que aqui habitam. Mas parece, definitivamente, que o passado foi esquecido e que, como tragédia, ele volta, trazendo impressionantes conexões com o presente.

Na primeira foto (acima) (clique para ampliar) (2), a avenida Rio Branco, no centro do Rio, aparece completamente deserta num sábado à tarde. Não porque tenha sido instituído o isolamento obrigatório – na época, foi decretado apenas um feriado de três dias (3), 19, 21 e 22/10 –, mas por ter a gripe atingido de tal forma a população que a maioria estava doente ou morta.


Foto 2: Revista Careta

A visão geral das enfermarias dos hospitais (fotos 2 e 3), coalhadas de doentes de um mal que, em média, matava em quatro dias, aparece nas fotos seguintes. A maioria da população, entretanto, não teve acesso a qualquer assistência médica. Não havia nem médicos, nem hospitais, nem recursos para os mais pobres.


Foto 3: Revista Careta

Para os pobres, sobretudo os que viviam nas áreas mais afastadas, os subúrbios, distribuíam-se, nos quartéis, em postos improvisados da assistência pública, nas escolas e nas igrejas, pão, água e sopa a fim de matar a fome dos muitos que a sentiam (foto 4). Pelas ruas, desnorteados, os “desvalidos”, como eram chamados, não conseguiam muitas vezes os mantimentos necessários à sobrevivência. 


Foto 4: Revista Careta

As duas imagens seguintes (fotos 5 e 6) mostram cenas que ainda hoje chocam as nossas retinas. No entanto, elas podem se repetir, como tragédia, cem anos depois. Carregavam-se os doentes, enquanto outros – ainda vivos ou já mortos – eram depositados no chão, à espera do auxílio ou do sepultamento, que, por vezes, tinha de ser aguardado por dias.


Foto 5: Revista Careta

Foto 6: Revista Careta

Os caixões ficavam insepultos, amontoando-se nos cemitérios. Também não havia coveiros suficientes para abrir as covas. No auge da pandemia, os presidiários foram convocados para o serviço.

A última imagem (foto 7) que selecionamos se refere aos fatos que ficaram guardados na memória duradoura de meu pai, que a transmitiu para mim – numa cadeia memorável. Pela ação da imprensa, que procura construir imagens para a história, reproduzo-a aqui, mais de cem anos depois. É a cena do caminhão coalhado de caixões, no qual, para caber um pouco mais, é preciso ajeitar a carga, já que o número de mortos era tão grande que os corpos ameaçavam cair da carroceria. 


Foto 7: Revista Careta

Não precisamos fazer explicitamente aproximações com o que vivemos hoje, no século XXI, diante de mais uma pandemia. Está tudo muito claro. As ruas desertas; os hospitais sem recursos suficientes para atender a enorme quantidade de gente à procura de ajuda; os pobres, que antes recebiam pão, água e sopa  (agora se ganha o chamado “Auxílio Emergencial”); os corpos dos mortos ao lado dos vivos; as valas abertas nos cemitérios para receber os milhares que aguardavam o sepultamento.

Há muitos outros elementos coincidentes entre a pandemia atual e a de 1918: a demissão de Carlos Seidl, então diretor de Saúde Pública, no auge da pandemia da gripe espanhola; o surgimento de “medicamentos” milagrosos (por exemplo, “vinagre de frutas” e “limão tomado como refresco”); os conselhos para evitar a doença (“lavar as mãos e o rosto com bastante sabão e sempre que possível”, “evitar aglomerações”, “não fazer visitas”, “evitar bebidas alcoólicas”, como divulgava incessantemente a Diretoria Geral de Saúde Pública); e a informação muito repetida de que “o doente era um foco ambulante da  moléstia” (4).

As descrições das cenas do cotidiano das pessoas também são incontáveis. Transcrevo apenas uma, de 2/11/1918, publicada na página 8 da revista Careta, com o título “Episódios do Tempo da Peste”, que, com precisão de detalhes, narra os horrores vivenciados: “São oito e meia horas da manhã de uma quarta-feira cheia de sol. A esquina da rua Pedro Américo e Catete, na delegacia, há uma quadra do Palácio do Governo, para um caminhão conduzindo cadáveres descobertos, sem caixão, estendidos nas taboas. O caminhão ali estaciona, durante uma hora, diante da quitanda, do açougue, da venda, da padaria. Quando esse parte, chega o segundo, expondo o corpo morto de uma pobre mulher, cuja saia rota na alvura do ventre, põe uma nota de crueldade indecorosa nessa miséria fúnebre. O terceiro caminhão chega às dez, e enquanto o condutor vai beber um parati no botequim fronteiro, as crianças trepam pelas rodas, para espiar os defuntos. O quarto caminhão, contendo numerosos cadáveres, aparece às onze e desaparece ao meio dia e por onde roda espalha um cheiro desagradável e entontecedor. Na rua do Catete, na rua Barão de Guaratiba, na rua Pedro Américo, uma assustada multidão, desentocando-se das casas fechadas, vem contemplar a passagem desses trágicos carros.  Os passageiros dos bondes levam ao nariz os lenços”.

Gostaria de terminar este texto com duas reflexões que, a meu ver, introduzem ampla discussão sobre o sentido da história e podem fornecer inúmeras possibilidades num presente incerto e, de certa forma, apavorante como o atual – assombrados que estamos diante de uma pandemia que dizima milhares de vidas em todo o mundo. A história sempre nos ajuda a atravessar caminhos de incertezas e possibilita pontes que permitem vislumbrar um futuro melhor.

É preciso, porém, ter em conta que, como diz Marx na página 14 da mesma obra anteriormente citada, os homens que são responsáveis pela produção da sua própria história “não a fazem segundo a sua livre vontade, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se defrontam diariamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”.

No epílogo feito por Herbert Marcuse, escrito para a edição de 1965 do mesmo livro, o pensador, ao constatar que quando Marx escreveu o texto não conhecia o horror dos períodos fascista e pós-fascista, se atribuiu a prerrogativa de corrigir as sentenças introdutórias de O 18 de Brumário. Diz ele, na página 19: “Os fatos e personagens da história mundial que ocorrem, por assim dizer, duas vezes, na segunda não ocorrem mais como farsa. Ou melhor: a farsa é mais terrível do que a tragédia à qual ela segue”.

Referências

MARCUSE, Herbert. “Prólogo”. In: MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

MARX, Karl. O 18 de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.


Foto: Acervo pessoal

(1) Na obra, Marx analisa o golpe de Estado que Luís Bonaparte desferiu na França em 2/12/1851 e, a partir do exemplo francês, aborda a questão da luta de classes como motor da história. A frase de Marx, logo na abertura do texto, é:  “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa”. 

(2) Todas as fotos deste artigo foram publicadas na Revista Careta, entre 26/10 e 30/11/1918.

(3) O dia 20/10/1918 foi um domingo.

(4) Todas as citações foram retiradas dos jornais da época: O Paiz, 26/7, 15/10 e 22/10/1918; A Noite, 18/10/1918, entre outros.

* Marialva Barbosa é professora titular da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ e pesquisadora do CNPq