Por Francisco de Assis Esteves*
A humanidade já vivenciou inúmeras catástrofes, tanto de origem natural, como terremotos, furacões e a gripe espanhola, quanto de origem antrópica, como guerras, acidentes atômicos e revoluções. Dentre as revoluções, destacam-se a Revolução Agrícola, que se estendeu durante vários séculos antes de Cristo, e a Revolução Industrial, iniciada no fim do século XVIII na Inglaterra e que durou mais de dois séculos. Esses eventos promoveram profundas alterações nos comportamentos e padrões culturais das pessoas, famílias, grupos sociais e toda a sociedade. Ao longo da Revolução Agrícola, o homem, que tinha o hábito nômade, foi se tornando cada vez mais sedentário e assimilando tecnologias que lhe possibilitaram se fixar em áreas antes ocupadas por florestas, o que permitiu os primeiros contatos com os chamados arbovírus. Contudo, deve-se enfatizar que todas essas alterações ocorreram de maneira lenta e gradual ao longo de décadas e séculos.
Muitos dos hábitos que surgiram durante as revoluções se fazem presentes até os dias de hoje. Um deles data da Revolução Industrial. Ao contrário do que ocorria nos primórdios da Revolução Agrícola, quando o homem plantava apenas o necessário para manter as demandas de suas famílias, na Revolução Industrial o homem associava o hábito sedentário a novas e potentes tecnologias, passando a dispor de grandes ofertas de todos os tipos de bens, muito mais do que as reais demandas. É importante destacar que grande parte da produção na Revolução Industrial foi baseada na exploração dos recursos naturais de regiões além do local onde ela se desenvolvia.
Em meados do século XX começa a prosperar a sociedade de consumo
No fim do século XIX e em especial ao longo do século XX, a ciência se desenvolveu consideravelmente. Nesse período, gerou conhecimentos que impulsionaram a Revolução Industrial com tecnologias que propiciavam novos produtos em grandes quantidades, muitas vezes criando necessidades que nem sequer existiam. Assim, a sociedade de consumo começou a se consolidar. Como resultado, à medida que a Revolução Industrial avançava, surgiam novos hábitos de vida nas sociedades, os quais eram seguidos por vários desafios de considerável complexidade, especialmente os socioambientais. Por exemplo, o acúmulo de rejeitos de toda sorte de materiais que eram (e continuam sendo!) depositados em locais onde geralmente degradavam recursos indispensáveis ao ser humano: diferentes vegetações, recursos hídricos e a própria atmosfera.
No Brasil, a sociedade de consumo começou a ganhar corpo em meados do século XX e se solidificou no século XXI. A manutenção desse tipo de sociedade se dá a partir do uso de recursos naturais, levando, em muitos casos, a seu esgotamento. As florestas foram as primeiras vítimas desse modelo, com a extração de madeira e recursos não madeireiros, como os minérios nos subsolos. Na esteira da destruição das florestas, foram os rios, lagos e oceanos, que vêm sendo deteriorados gerando perdas progressivas da biodiversidade. Muitos ecossistemas, como a Mata Atlântica e o Cerrado, com milhares de espécies vegetais e animais, foram degradados e na maioria das vezes convertidos em monoculturas ou terras improdutivas.
Com a redução da rica biodiversidade, vem simultaneamente a redução ou eliminação de serviços ecossistêmicos. As florestas, embora ainda existentes hoje, passam a não ter mais a mesma capacidade de oferecer, em bases sustentáveis, bens naturais como madeira, frutos, água e outros recursos, tamanho é o grau de degradação.
De maneira global, nos rios, lagos e oceanos a poluição das águas tem piorado em virtude do despejo dos esgotos doméstico e industrial e do desmatamento das bacias de drenagem, que, além de impactar gravemente tais ecossistemas, os torna fontes de graves enfermidades − somente no Brasil isso resulta em milhares de óbitos por ano e na redução do estoque pesqueiro. Uma das principais consequências do cenário é a piora na qualidade de vida das populações que retiravam desses locais grande parte da alimentação para a sobrevivência.
A última das revoluções: a Tecnológica
A segunda metade do século XX foi palco de mais uma revolução, a Tecnológica, também conhecida como Revolução Digital. Ela iniciou-se gradualmente na metade do século XX e alcançou extraordinário desenvolvimento no XXI.
Ao longo da Revolução Tecnológica, as sociedades foram paulatinamente se adaptando ao constante nascimento das novas tecnologias, que estimularam alterações na indústria, comércio, agricultura, telecomunicações e transporte, promovendo também profundas mudanças nos padrões de relacionamento interpessoal. Um dos potenciais mais evidentes dessa revolução é o de aproximar os cidadãos, mesmo aqueles em outros continentes, com diferentes culturas e idiomas. É preciso observar, no entanto, que muitas vezes essas ferramentas, como efeito inverso, podem promover o distanciamento entre pessoas próximas, até mesmo nas famílias.
Coronavírus notifica à sociedade o fim da era do desenvolvimento não sustentável
O mundo descortinou o ano de 2020, inesperadamente, com a pandemia do novo coronavírus, diferenciada, devido à enorme velocidade de propagação, de outras tantas pandemias que a humanidade já experimentou. A doença, síndrome respiratória aguda grave, foi identificada pela primeira vez em 1/12/2019 na província de Wuhan, China. Em fevereiro de 2020 já havia alcançado vários países da Europa, logo atingindo todos os continentes.
Em meio à pandemia, a era digital vem trazendo várias vantagens, como o rápido acesso à informação e o contato eletrônico, em tempo real, em períodos de isolamento. Contudo, no caso do Brasil, lamentavelmente a COVID-19 também encontrou milhões de pessoas sem acesso a água potável e saneamento básico − cerca de 35 e 100 milhões, respectivamente. Portanto, em condições tão precárias quanto aquelas observadas quando a gripe espanhola assolou o Brasil há um século, em 1918.
As consequências para as sociedades em todo o mundo têm sido dramáticas. São graves os atuais danos à economia das nações e, principalmente, à saúde e à vida humanas. As populações, abruptamente surpreendidas com a rápida disseminação do novo vírus, foram obrigadas a alterar hábitos de vida pessoais, familiares e coletivos. Se ao longo da história as mudanças de hábitos e padrões de relacionamento e produção provocadas por diferentes impactos em geral ocorreram de maneira lenta, durante a pandemia do coronavírus os cidadãos tiveram que alterar repentinamente seus modos de viver, independentemente de nacionalidade, cultura, religião ou qualquer outro componente sociocultural.
O confinamento foi, então, a principal alternativa encontrada neste momento pela ciência e pelos governos da maioria dos países para o controle da pandemia. Por isso, a imprensa internacional tem noticiado algo inédito na história: metade da população mundial se encontra confinada em casa ao mesmo tempo.
Além dos enormes impactos macroeconômicos que recaíram sobre nações inteiras, até as mais desenvolvidas, com o confinamento, vários distúrbios, como alterações de comportamento e outros danos à saúde mental, começaram a ser observados por especialistas. Mas o longo período em casa também vem criando uma oportunidade única para que as pessoas possam refletir acerca do modelo de vida anterior à COVID-19. Calcado no crescimento contínuo e na exploração descontrolada dos recursos naturais, esse modelo de sociedade de consumo tem sido posto em xeque. A caminhada, até então inexorável, de um paradigma de desenvolvimento com futuro finito e insustentável parece estar sendo interrompida.
Sustentabilidade: o modelo de sociedade no período pós-coronavírus
O naturalista alemão Alexander von Humboldt foi um dos primeiros cientistas a chamar a atenção para o fato de a humanidade ter adotado uma trajetória insustentável. Já naquela época, 200 anos atrás, ele afirmava que o homem destruiria a natureza: “A exploração descontrolada da natureza, como o homem está realizando, terá enormes consequências para a humanidade, inclusive com alterações sobre o clima em escala regional e global”.
Embora o planeta pareça caminhar rumo às ideias de Humboldt, somente o futuro dirá se elas serão realmente levadas a sério. O fato é que a pandemia vem deixando uma lição: o conhecimento científico é um dos principais instrumentos que as sociedades dispõem para reorientar o atual modelo de produção e consumo em direção ao uso racional dos recursos naturais. Porém, deve ser destacado que, para esse novo modelo ser ainda mais exitoso, a ciência deverá romper com as fronteiras que a separa das artes, das humanidades, da espiritualidade e dos saberes tradicionais, ainda tão presentes em muitos grupos sociais brasileiros, como os indígenas. No novo modelo de sociedade pós-pandemia, as fronteiras deverão ser substituídas por pontes em que todos os conhecimentos interagirão livremente.
A necessidade de a sociedade reorientar os padrões de produção, consumo e uso racional dos recursos naturais não é um alerta que se faz apenas por ocasião. Alertas têm sido feitos há décadas em diferentes fóruns sobre o tema. No mais recente e talvez mais importante, líderes de cerca de 190 nações decidiram, em 2015, na sede da Organização das Nações Unidas (ONU), assinar um plano de ação para erradicar a pobreza, proteger o planeta e garantir que as pessoas alcancem paz e prosperidade. O documento, denominado “Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, contém um conjunto de 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). Nele, a humanidade é conclamada a buscar o desenvolvimento em bases sustentáveis como forma de garantir um futuro próspero e harmônico para as gerações atuais e, especialmente, as futuras. Frente ao impacto e à relevância da pandemia do coronavírus, recente relatório da ONU destacou as implicações e limitações ao alcance de cada um dos ODS, assim como ações de enfrentamento a serem adotadas.
No período pós-pandemia poderá surgir uma nova ordem a fim de reorientar ações pessoais, passando pelos núcleos familiares até alcançar toda a sociedade. Essa nova ordem, que organizará novos modelos e padrões de vida sociais, deverá ser pautada com base na sustentabilidade do uso dos recursos naturais, como proposto pela “Agenda 2030”. Ou seja, uma tragédia em escala global, como a atual pandemia, talvez possa ser o vetor da mudança no curso do modelo de desenvolvimento não sustentável e finito para o modelo de base sustentável. A COVID-19 assume, portanto, o papel de agente de reorientação para que a sociedade coloque em prática ideias que garantam mais equilíbrio entre o homem e o meio ambiente, apoiando-se em princípios de sustentabilidade.
Como já mencionado aqui, as reflexões sobre a busca de novos modelos de desenvolvimento não são recentes. Também no ano de 1974, durante suas aulas na Universidade de Kiel, na Alemanha, o ecólogo alemão Harald Sioli já enfatizava: “Um modelo de crescimento econômico infinito, que tem como premissa o uso indiscriminado dos recursos naturais, tem um futuro finito”. Essa afirmação vai ao encontro dos argumentos recentes de que a transição para novos modelos de desenvolvimento deve estar alinhada ao reconhecimento dos limites impostos pela biosfera e ao fato de a economia ser um subsistema da sociedade, que deve estar a serviço das pessoas, não das coisas.
A vida na sociedade pós-pandemia do novo coronavírus tende a se dar, predominantemente, em escala regional e, principalmente, em escala local. Assim, aqueles que puderem dispor de uma área, mesmo pequena, para o cultivo de algumas demandas de alimentos serão os mais beneficiados com a sustentabilidade.
As populações dos centros urbanos ainda são totalmente dependentes da importação de alimentos e outros bens indispensáveis à vida. Por não terem a possibilidade de produzir o mínimo necessário à sobrevivência, elas funcionam como sistemas heterotróficos, segundo os ecólogos. Esperamos que, após esse período de epidemia do coronavírus, os moradores desses centros urbanos possam passar a usar áreas ainda sem edificações para a criação de hortas comunitárias, nas quais todos poderão compartilhar experiências, interagir e colher parte da alimentação necessária.
Alcançamos o momento em que a agricultura familiar, a agroecologia, a economia solidária, o manejo florestal sustentável e até mesmo o uso de moedas de circulação local assumirão papel de destaque na sociedade. Essas e outras práticas, caracterizadas pelos impactos socioambientais positivos, interagirão com as modernas tecnologias de informação com o objetivo de construir um novo modus operandi da sociedade em um mundo interconectado.
A reorientação do modo de viver, dessa maneira, poderá conduzir à construção de um ambiente familiar mais harmônico e intensamente vivenciado, ao aprofundamento das relações interpessoais e à valorização do tempo de lazer, com maior interação com a natureza como fonte de inspiração e bem-estar. Haverá também uma reorientação quanto ao local de trabalho, que deverá se tornar mais humanizado e pautado no fortalecimento do senso de colaboração. Deverá surgir um novo modelo de relação sociedade˗empresa˗governo, contribuindo para o que foi apontado no último Fórum Econômico Mundial como um “capitalismo stakeholder”: as empresas levam em conta os interesses de todos os públicos que dependam − diretamente ou não − do sucesso da companhia, em lugar da primazia de um único público, os acionistas.
A pós-pandemia ainda poderá trazer o fim do sistema social mediado pelo consumo de bens supérfluos, no qual a sociedade utiliza muito mais do que a natureza pode fornecer ao homem, isto é, o fim do período da insustentabilidade. É preciso reiterar que poderá se iniciar um período do desenvolvimento humano apoiado na sustentabilidade, mais factível de ser alcançado e mantido pela sociedade neste século. Será necessário maior senso de generosidade, que fomente a justa distribuição de renda, a eficácia dos serviços públicos e a maior e mais responsável presença do Estado na economia.
Tudo o que não podemos desejar e ter após a pandemia que enfrentamos hoje é a volta à “normalidade”, a volta aos tempos em que “a vida normalizara-se naquela anormalidade” − palavras de Euclides da Cunha no clássico Os Sertões.
Referências
BRANCO, Paulo D. Chegou a Hora de Revisitar o Triple Bottom Line. Abr. 2012, p. 22. Disponível em: http://pagina22.com.br/index.php/2012/04/chegou-a-hora-de-revisitar-o-triple-bottom-line/.
_____. Sustentabilidade é o Imperativo. In Revista Globo Rural. São Paulo: Editora Globo, fev. 2019, pp. 14-16. Disponível em: https://revistagloborural.globo.com/Noticias/Sustentabilidade/noticia/2019/12/sustentavel-e-o-imperativo-diz-paulo-branco.html.
ONU. Shared Responsibility, Global Solidarity: Responding to the Socio-economic Impacts of COVID-19. Mar. 2020. Disponível em: https://unsdg.un.org/resources/shared-responsibility-global-solidarity-responding-socio-economic-impacts-covid-19.
SCARANO, Fábio R. Regenerantes de Gaia. Rio de Janeiro: Dantes, 2019, 126 pp.
WULF, Andrea. A Invenção da Natureza: A Vida e as Descobertas de Alexander von Humboldt. São Paulo: Editora Planeta, 2016.