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A pandemia e a saúde mental dos mais vulneráveis

Para professor do Instituto de Psicologia (IP) da UFRJ “não há como pensar a promoção de saúde sem pensar a promoção de cidadania”

A curva de contágios pela COVID-19 no Brasil tem aumentado a cada dia. Até o momento de publicação desta entrevista, já haviam sido registrados no país 39.144 casos confirmados e 2.484 mortes. Enquanto as esferas federal, estaduais e municipais divergem em relação a quais estratégias tomar para enfrentar a doença, a população luta cotidianamente para sobreviver, não apenas aos danos causados à saúde física, como também à saúde mental. Como lidar com os efeitos devastadores de um vírus letal, associados a problemas estruturais, como o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), a dificuldade de acesso ao saneamento básico, a perda de direitos trabalhistas, a informalidade e o desemprego galopantes, o déficit habitacional, entre outros?

Para abordar o tema da pandemia da COVID-19 sob a perspectiva da Psicologia Social, o Setor de Comunicação do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (SeCom/CFCH) entrevistou Thiago Melicio, professor adjunto do Departamento de Psicologia Social, do Instituto de Psicologia (IP) da UFRJ. Segundo ele, em todo o mundo as pessoas estão tendo que reinventar seus modos de vida, ao mesmo tempo em que lidam com situações-limite, como enterros sem contato com o ente querido, sendo que, no Brasil, o abismo socioeconômico dramático e ascendente descortina um cenário conflituoso e peculiar. “No caso da realidade brasileira, em que se vive acentuada desigualdade social, em que parte das autoridades do primeiro escalão da gestão pública age em desacordo com as orientações sanitárias e científicas, com grupos polarizados e forte acirramento das diferenças, esses processos e os fortes impactos na saúde mental são ainda mais complexos”, afirma o docente. 

A rede pública de saúde busca atuar, tanto no que se refere aos efeitos da pandemia como no atendimento psicossocial, para prestar os serviços, garantidos pela Constituição de 1988, a 75% da população que depende exclusivamente do SUS. No entanto, faltam equipamentos, treinamento e condições mínimas para realizar esse atendimento. “Tão importante quanto pensarmos nos efeitos da pandemia na conjuntura atual, é refletirmos sobre os efeitos das políticas de austeridade e de privatização do bem público no Sistema Único de Saúde”, aponta Melicio.

Para ele, a COVID-19 não afeta igualmente a todos. “O Brasil tem um histórico escravocrata, oligárquico e patriarcal, que produz desigualdades e concentração de renda, fazendo com que a incidência e as formas de vivenciar a pandemia sejam diferentes entre os grupos sociais”, enfatiza. Nesse sentido, a universidade pública tem papel determinante e deve exercer esse protagonismo. “As universidades públicas são responsáveis pela maior parte da produção científica do país, dando subsídios importantes para as tomadas de decisão da gestão pública e dos serviços, (…) fazendo com que a Academia tenha uma incidência direta ainda mais significativa na sociedade”, analisa o professor do IP-UFRJ. 

Confira abaixo a entrevista na íntegra:

SeCom/CFCH: Para além dos riscos evidentes ao sistema respiratório, é possível afirmar que a pandemia da COVID-19 tem afetado também a saúde mental dos brasileiros? Por quê?

Thiago Melicio: Um ponto importante de análise desta pandemia é observar a velocidade com que ela nos obriga a tomar decisões. Transformações profundas nos modos de vida estão ocorrendo em curto período de tempo, sendo escassas e ainda incipientes as possibilidades de organização coletiva e de acompanhamento dessas mudanças. Trata-se não “apenas” do isolamento social e dos consequentes rearranjos no campo econômico e do trabalho, mas sim de buscar compreender quais são as características desse novo mundo que se descortina e quais condições temos para nele nos situarmos como sujeito e como cidadão. As pessoas estão tendo que reinventar as formas de se relacionarem entre si, em um cenário em que pouco se sabe sobre o futuro, o que gera grandes desafios para a saúde mental.

Somado a isso, parece não haver na história recente uma preocupação, mobilização e restrição de circulação tão generalizadas, nacional e internacionalmente. O medo do contágio, bem como o luto, também são elementos marcantes. Junto à perda de pessoas, há o fato do enterro ou cremação não permitir contato direto com o ente querido. Tais processos produziriam um contexto problemático e desafiador mesmo em uma sociedade coesa, com instituições sólidas capazes de promover e garantir direitos básicos e essenciais. No caso da realidade brasileira, em que se vive acentuada desigualdade social, em que parte das autoridades do primeiro escalão da gestão pública age em desacordo com as orientações sanitárias e científicas, com grupos polarizados e forte acirramento das diferenças, esses processos e os fortes impactos na saúde mental são ainda mais complexos. 

SeCom/CFCH: Como é o acesso ao atendimento psicossocial na rede pública de saúde? Como o senhor acredita que a atual conjuntura afetará a realidade das pessoas que procuram esse atendimento?

Thiago Melicio: O Brasil conta, desde a Constituição Federal de 1988, com o Sistema Único de Saúde (SUS), que é público, gratuito e universal, sendo o principal ativo não só ao enfrentamento da pandemia como na resposta às demais necessidades de saúde da população. No tocante ao cuidado em saúde mental, ressalta-se que o SUS é pautado na reforma psiquiátrica e na luta antimanicomial, tendo sido construída e regulamentada uma rede substitutiva ao modelo asilar, mais recentemente estruturada em torno da Rede de Atenção Psicossocial (Raps), que tem como finalidade a atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental, bem como àquelas com necessidades decorrentes do uso abusivo de álcool e outras drogas.

Em termos de organização da rede, a Atenção Básica responde à coordenação do cuidado e da comunicação entre os serviços, constituindo o nível de atenção mais capilarizado e a principal porta de entrada para os atendimentos. É sobretudo na unidade básica de saúde mais próxima de suas moradias, como as Clínicas de Saúde da Família, que as pessoas irão encontrar o primeiro acolhimento de suas demandas e, se assim for necessário, elaborar coletivamente um projeto terapêutico singular, que poderá envolver outros atores, setores e dispositivos, com destaque aos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), com ações alicerçadas nas dimensões territoriais e comunitárias, e na desinstitucionalização de usuários longamente internados.

No tocante à conjuntura atual, temos, por um lado, o desafio de adequar a promoção do cuidado a recomendações que demandam distanciamento social e restrição de circulação. Uma vez que um dos princípios é a formação de vínculo, e outro é o tratamento aberto, com circulação entre os serviços e a integração com a cidade, os serviços têm investido esforços em redesenhar os processos de trabalho, buscando novas experimentações e alternativas que consigam dar conta tanto do início e da continuidade do tratamento como das orientações sanitárias. 

Por outro lado, há uma grande preocupação com as condições de trabalho. Temos observado a insuficiência de Equipamentos de Proteção Individual (EPI), bem como de treinamento e ambiência adequada em parte dos serviços. Contudo, para além dos insumos e protocolos inerentes à pandemia da COVID-19, vale ressaltar o desmonte histórico, recentemente acentuado, da rede pública de saúde realizado nas esferas municipal, estadual e federal. A redução da cobertura da estratégia de saúde da família, a diminuição do quantitativo das equipes mínimas nas unidades básicas, a carência de profissionais, equipamentos e medicamentos nos hospitais federais, e a desregulamentação e esvaziamento dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasf), necessários à ampliação do cuidado em saúde mental na atenção básica, são apenas alguns exemplos. 

Ao mesmo tempo em que se observa o aumento significativo da demanda por atendimento, em especial à saúde mental, é notório o sufocamento produzido, entre outros, pela Emenda Constitucional 95/2016 do teto dos gastos, impedindo o incremento da capacidade de resposta dos serviços. Assim, uma vez que mais de 75% da população brasileira dependa exclusivamente do SUS, que é resultado de reivindicações de movimentos sociais, mobilizações comunitárias e ações políticas democráticas, tão importante quanto pensarmos nos efeitos da pandemia na conjuntura atual é refletirmos sobre os efeitos das políticas de austeridade e de privatização do bem público no SUS, evidenciando a importância de defendê-lo, uma vez que é garantido constitucionalmente como direito de todos e dever do Estado.

SeCom/CFCH: Diversos fatores contribuem para o adoecimento psíquico de pessoas em condições socioeconômicas mais vulneráveis: o baixo acesso ao saneamento básico por aproximadamente 50% da população brasileira, que não permite condições de higiene necessárias para evitar a contaminação; a perda de garantias e direitos, desde a Reforma Trabalhista de 2017, que impede que os trabalhadores mantenham os seus empregos ou que faz com que sofram reduções salariais; o alto percentual de trabalhadores informais, que está em torno de 50%; o déficit habitacional, que impede que as pessoas, em territórios como favelas, periferias e zonas rurais, fiquem isoladas e tenham que se manter em ambientes aglomerados, facilitando assim o contágio, entre outros fatores. Como o senhor analisa esse quadro da perspectiva da Psicologia Social?

Thiago Melicio: A Psicologia Social refere-se a um campo plural e diverso, permitindo diferentes linhas de resposta. Ao nos debruçarmos sobre autoras e autores europeus e latino-americanos, que trouxeram, entre outros, contribuições importantes à luta antimanicomial brasileira, podemos salientar a indissociabilidade entre os processos individuais e sociais, lançando luz em como a produção de subjetividade ocorre justamente no elo entre, por um lado, sistemas de percepção, afeto e sensibilidade e, por outro, sistemas econômicos, sociais, tecnológicos e ecológicos.  Ao propormos essa análise de maneira transversal à discussão de saúde, podemos recuperar a ideia proveniente da articulação das ciências da saúde com as ciências humanas e sociais, em que a saúde deve ser considerada a partir de seus condicionantes e determinantes sociais. Nessa perspectiva, não há como pensar a promoção e a proteção de saúde, em especial da saúde mental, sem pensar a promoção de cidadania. O Brasil tem um histórico escravocrata, oligárquico e patriarcal, que produz desigualdades e concentração de renda, fazendo com que a incidência e as formas de vivenciar a pandemia seja diferente entre os grupos sociais. Um exemplo disso refere-se ao quantitativo de leitos disponíveis para tratamento da COVID-19 ser muito superior entre os clientes de plano de saúde, do que entre aqueles que dependem exclusivamente do SUS. Outro ponto, situado em uma perspectiva histórica mais ampla, é que o isolamento social e os agravamentos do adoecimento psíquico que ele produz não são novidades da conjuntura atual. Muitos já eram e continuam sendo cerceados fisicamente e/ou simbolicamente em suas possibilidades de existência, seja em função do racismo estrutural, das variadas formas de violência contra a mulher, da luta de classes ou mesmo de modelos biomédicos historicamente hegemônicos no tratamento ao que se convencionou nomear de loucura, entre outros fatores. 

Portanto, torna-se importante realçar a produção em Psicologia Social que, ao se debruçar sobre os aspectos históricos e sobre as relações de poder que regulamentam os modos de vida, tenha na defesa da coisa pública e nos processos de resistência daí recorrentes o exercício do seu compromisso social. Postura essa que se evidencia na análise da pandemia, uma vez que o impacto do novo coronavírus não se reduz à quantidade de óbitos e de pessoas que testaram positivo, abrangendo também a sobrecarga que ele gera na rede de serviços de atenção e de apoio. Conforme avançam os casos da COVID-19, ficam ainda mais agravadas as situações de vulnerabilidade social. Em uma busca contínua, que todos estamos vivenciando, para compreender e se situar nessa nova realidade que se apresenta, é notório o quão mais arenoso pode ser o solo dos grupos sociais historicamente menos favorecidos. O que a pandemia faz, e no tocante à saúde mental não é diferente, é escancarar à sociedade a necessidade de estratégias coletivas para o enfrentamento sério das demandas sociais, contando com o apoio dos diferentes setores da sociedade, mas que seja pautado fundamentalmente no fortalecimento e na articulação das políticas públicas e na promoção da equidade e da dignidade humana.

SeCom/CFCH:  O senhor coordena e participa de alguns projetos de pesquisa e extensão vinculados ao IP-UFRJ, que visam ao atendimento psicossocial de usuários da rede pública de saúde. Como projetos e outras experiências desenvolvidas em universidades públicas podem contribuir para atenuar o quadro atual?


Foto: Acervo pessoal

Thiago Melicio: As universidades públicas são responsáveis pela maior parte da produção científica do país, dando subsídios importantes para as tomadas de decisão da gestão pública e dos serviços. São inúmeros os serviços-escola geridos pelas universidades que compõem a rede de saúde, bem como é crescente a quantidade e qualidade de projetos de extensão das residências e dos internatos em Medicina, realizados a partir da integração ensino-serviço-comunidade, fazendo com que a Academia tenha uma incidência direta ainda mais significativa na sociedade. 

Em um momento como o da pandemia da COVID-19, novas urgências colocam-se à mesa, exigindo inovação e construção em tempo real de novos processos de trabalho. Assim, temos observado o quanto a Universidade tem desempenhado papel significativo nestas frentes: oferta de atendimento e tratamento a pessoas com sintomas da COVID-19 nos hospitais universitários; desenho de novas possibilidades de atuação, como as relacionadas ao atendimento por meio de tecnologia da informação e da comunicação, quando as características do trabalho e os recursos disponíveis os torna viável; criação de protocolos e elaboração e execução de treinamentos para profissionais de saúde, como os que têm ocorrido na atenção básica do Rio de Janeiro; mobilização comunitária e produção de material informativo relacionado à prevenção da COVID-19, com linguagem acessível, para divulgação em comunidades de baixa renda, como as que têm sido realizadas no Complexo do Alemão, a partir do projeto da UFRJ no Programa de Educação pelo Trabalho, PET- Interprofissionalidade.

Temos ainda o processo de democratização do acesso, pautado nas políticas afirmativas de cotas, que faz com que o corpo universitário reúna grande diversidade social, econômica e cultural. Isso faz com que, em um momento de grande mobilização e profunda transformação social, as ações e a produção do conhecimento sejam mais coerentes e dialógicas com as diferentes realidades da população. Ao que pese a progressiva redução de financiamento, somada ao corte de incentivos e ao negacionismo científico, a Universidade tem comprovado não só a capacidade como a qualidade de sua resposta, demonstrando que para a construção de um país coeso, promotor de dignidade e de bem estar social faz-se condição o ensino público, gratuito e de qualidade.

Reportagem: Pedro Barreto/SeCom/CFCH

Arte: Marco Ribeiro/Coordcom/UFRJ