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Artigo: É tudo verdade?

Professora da UFRJ analisa a relação entre pais e filhos durante o período da quarentena

Por Priscila Basílio*

“Escola é, sobretudo, gente

Gente que trabalha, que estuda,

que se alegra, se conhece, se estima.”

(Paulo Freire)

A COVID-19 não é mais uma “gripezinha”, mas uma das piores crises que enfrentamos neste século. Uma batalha que nos faz sentir medo do sofrimento de nossos conhecidos, amigos, familiares, entes queridos e dos mais frágeis. O neoliberalismo e seus modos de operar a economia e as relações sociais realmente não “salvarão” o mundo. Urge, então, acreditar que precisamos (re)inventar outras maneiras de nos relacionarmos com a vida.

Ao assistir a uma palestra em um festival chamado É Tudo Verdade, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), um cineasta, para falar de questões que permeiam as relações em nossa sociedade e dos modos pelos quais aprendemos a funcionar, pondera em tom sarcástico: “É tudo verdade?” Ele questiona o quanto estamos realmente dispostos a ouvir o que o outro tem a nos dizer e traz um exemplo: quando, no elevador, perguntamos ao vizinho se está tudo bem, estamos verdadeiramente dispostos a ouvi-lo? Ficamos realmente incomodados ou estaríamos tentando apenas disfarçar nossa indiferença, acrescentando que passaríamos em sua casa em outro momento? “É tudo verdade ou é tudo mentira?”, pergunta o cineasta. “De que modo estamos vivendo?”

Em uma “sociedade da culpa”, quando paramos para olhar o sol ou observar os pássaros, começamos a nos sentir rapidamente angustiados. Temos pressa, não sabemos bem o porquê, mas a sensação é de que sempre temos algo esperando para darmos conta.

O que isso tem a ver, no entanto, com o que tenho a dizer como professora de bebês e crianças? Quando pensamos nessa etapa da vida, é fácil resgatar o documento que formula as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), de 2010. Ele não nos deixa mentir: as interações e brincadeiras são os eixos norteadores para a nossa construção como seres humanos. Sendo assim, por que nós, adultos, deixamos de brincar?

O que eu aconselharia às famílias que ainda têm seus direitos garantidos para poderem cumprir esses dias de isolamento físico, diante de um país desigual em que nem todos dispõem do mesmo direito, é: brinquem! Brinquem, brinquem muito com seus filhos! Há uma coisa que posso garantir: teremos muito tempo para as letras e os números em uma sociedade letrada. Não se pressionem, não se sobrecarreguem, não se sintam mais uma vez culpados(as) por não fazerem o papel de um(a) professor(a) dentro de casa. Simplesmente sejam pais, mães, avós, ou melhor, bruxas, fadas e magos no campo da imaginação. 

Brinquem com seus filhos daquelas brincadeiras tradicionais de antigamente que eles provavelmente desconhecem, como escravos de Jó, peteca, esconde-esconde, amarelinha, pular corda, elástico etc. Era assim que brincávamos muito quando ainda podíamos frequentar praças e ruas livremente. Nessa época, era preciso que nossos pais nos chamassem para, bem à noitinha, dormir, já que nos encontrávamos ainda sentados com nossos amigos, brincando de contar histórias de terror… Sim, isso acontecia. A humanidade empobreceu em experiências e já não há mais lugar para longas histórias. Estamos quase mudos.

“Meu quintal é maior do que o mundo”

Hoje atuamos como máquinas, na maioria das vezes sempre respondendo a alguma demanda externa, pois não somos capazes de nos ouvir, de ficar em silêncio e de “perder tempo” com o que é encarado como desimportante. Entretanto, agora, podemos (re)aprender outro modo de existir, como bem escreve, em Memórias Inventadas – A Infância, o poeta Manoel de Barros: “Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes. Prezo insetos mais que aviões. Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis. Tenho em mim esse atraso de nascença. Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos. Tenho abundância de ser feliz por isso. Meu quintal é maior do que o mundo”.

Portanto, talvez este seja o grande apelo do Universo: aprendamos a perder tempo com as coisas consideradas desimportantes, aprendamos a “perder tempo” – termo tão usado no capitalismo desenfreado – com os pequenos, brincando com eles, contando-lhes experiências. Então, por que não usamos como antídoto aquilo que o capitalismo considera um veneno? Devemos “perder tempo” com as coisas consideradas desimportantes. 

Façamos a todos um convite: brinquem, dancem, cantem, inventem, experimentem outros modos de existência! E, quando retomarmos nossas vivências e experiências escolares, estejamos mobilizados por uma nova forma de existir que nos foi “roubada” pela lógica do lucro e da economia. Que possamos nos conscientizar e resistir à ordem econômica que subordina os interesses da população à ganância do capital!  Como diz Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia, “a capacidade de nos amaciar que tem a ideologia nos faz às vezes mansamente aceitar que a globalização da economia é uma invenção dela mesma ou um destino que não poderia se evitar, uma quase entidade metafísica, e não um momento de desenvolvimento econômico submetido, como toda produção econômica capitalista, a uma certa orientação política ditada pelos interesses dos que detêm o poder”.

O que podemos oferecer às crianças, agora, é aquilo que, antes de ser direito, é condição para a existência plena: um cotidiano brincante, que a sociedade capitalista esqueceu ou não quis nos ensinar.

Iniciemos, neste momento de tempos difíceis, um diferente estilo de existir/viver, um projeto de transformação em favor da revolução nas concepções de ser humano e de ser social. Uma revolução cultural que se processe simultaneamente em níveis macro e micropolíticos, pois a luta contra a captura não se situa apenas no plano da economia política, mas também no da economia subjetiva.

Para Felix Guattari e Suely Rolnik, em Micropolíticas: Cartografias do Desejo, “os afrontamentos sociais não são mais apenas da ordem econômica, eles se dão também entre diferentes maneiras pelas quais os indivíduos e grupos entendem viver a sua existência”.

Modos mais solidários de existência

Quando isso tudo acabar, não saberemos se outras crises surgirão.  É bem provável que, diante desta situação que nos aflige, mobiliza, deixa raivosos e amedronta, tenhamos muito o que resgatar e (re)construir no mundo, mas esperamos registrar a finalização de um regime de exploração, afirmando outros modos mais solidários de existência. 

É neste momento, confinados, que podemos nos organizar e assim estamos fazendo. Quando retornarmos e andarmos juntos pelas ruas e praças, no trabalho e nos parques, penso que a nossa estratégia possa ser outra. Precisamos frear o crescimento da desigualdade, do neoliberalismo, das competições e acelerações. O tempo agora deve ser distinto e necessário para nos abraçarmos, nos fortalecermos como coletivo e para que possamos nos permitir uma parada instantânea ao ver um pássaro, uma árvore florida ou para estender a mão a um amigo precisando de ajuda.


Foto: Acervo pessoal

Que o nosso mundo possa pelo menos ser “É tudo verdade” para nós mesmos e que as nossas perguntas, quase mecânicas no elevador − “Como você está?” −, sejam verdadeiramente para acolher, trocar e ouvir. Nossos bilhetes para os idosos não precisam ser somente por causa da COVID-19, mas para construir uma rede permanente de solidariedade. Nosso “brincar” deve retornar às nossas vidas, e nosso isolamento − quando e se acontecer, além dos momentos de crise (COVID-19 ou outra qualquer) − não deve ser comandado por um mercado que controla nosso corpo, emoção e jeito de levar a vida, mas sim por um tempo interno, de organização interior, para voltarmos sempre melhores para nós próprios e para a humanidade.     

Referências:

BARROS, Manoel. Memórias Inventadas – A Infância. Rio de Janeiro: Planeta do Brasil, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 142-143.

GUATTARI, Felix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo. Rio de Janeiro: Vozes, 1986, p. 45.

*Priscila Basílio é professora do CAP-UFRJ da Educação Infantil, doutoranda em Educação pela UFRJ e integrante do Movimento Articulação Infâncias. Atuou como Conselheira Tutelar da Zona Sul do Município do Rio de Janeiro.