Se você é negro, posso dizer com quase certeza que já teve a sensação de que poderia morrer a qualquer momento. Se você é branco e está lendo essa matéria, entenda – não, não é a mesma coisa que achar que está em risco em alguma situação, como em um assalto, por exemplo. O que vamos falar aqui é sobre como um grupo é submetido a uma política de morte, de extermínio.
Comecemos com dados. Segundo o Atlas da Violência de 2019, produzido pelo xa0Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 75,5% das vítimas de homicídios, em 2017, foram negros (soma dexa0 pretos ou pardos, de acordo com a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística − IBGE), sendo que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1% e a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas), de 16%. Ou seja, proporcionalmente, para cada indivíduo não negro assassinado em 2017, aproximadamente 2,7 negros foram mortos. A letalidade tem cor no Brasil. Em uma década (2007 a 2017), a taxa de letalidade de negros cresceu 33,1%; já a de não negros apresentou um crescimento de 3,3%.
A política de morte tem nome: necropolítica. Para Achille Mbembe, filósofo, historiador, intelectual e professor universitário camaronês, o conceito de necropolítica está ligado ao poder de decidir quem deve morrer e quem pode viver. Essa seria a expressão máxima da soberania, é a vida como implementação e manifestação de poder.
Racismo que estrutura
No caso da população negra, a decisão do não viver e da política de extermínio que mata todos os dias é baseada no racismo estrutural e institucional. Uma das formas de pensar o racismo é fazê-lo a partir do fenótipo, que são as características observáveis dos indivíduos, como a cor da pele, o formato do nariz ou dos lábios, a textura dos cabelos. Pensadores como Carlos Moore, cientista social cubano que se dedica à história e cultura negras, e Cheik Anta Diop, historiador e antropólogo senegalês que estudou a cultura africana pré-colonial, acreditam que o racismo fenotípico é fator constituinte das relações raciais e que foi a partir de características fenotípicas diferentes que o racismo se estruturou.
Raça é um conceito que ao longo dos tempos tem sido utilizado para hierarquizar os povos, e depois do imperialismo para legitimar o processo de escravização posto em prática pela Europa na África. Lá existiam pessoas diferentes dos europeus, em costumes e tons de pele. Os europeus nunca admitiriam que elas pudessem ser como eles. Os escravos eram vistos como figuras sem honra, bestializadas, sem direito à dignidade. Podemos então entender o porquê de um determinado grupo ser considerado passível de violência, abuso ou morte. “Não são como nós”, pensam eles.
Com o fim da escravidão, os negros foram submetidos ao completo abandono. A imagem de bestializados e violentos se disseminou ainda mais, criando-se a ideia de que xa0essa população à margem da sociedade poderia e deveria ser dizimada, para a segurança dos cidadãos “de bem”.
A política de extermínio não se reduz apenas a tirar vidas. Acontece também com a falta de políticas públicas voltadas para essa população. A política nacional de saúde pública para a população negra é um bom exemplo. Ela completa 10 anos em 2019, mas ainda não é uma realidade na saúde pública.
Certas doenças são conhecidas por acometerem mais a população negra. Segundo o Ministério da Saúde, são a anemia falciforme, a diabetes mellitus tipo II, a deficiência de glicose-6-fosfato desidrogenase e a hipertensão arterial. Roberta Mariano, estudante de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estabelece uma relação entre as vulnerabilidades social, individual e programática às quais esse grupo está exposto e o fato de os negros serem os maiores acometidos.
Outro aspecto que não podemos negligenciar é a saúde mental. No pós-abolicionismo, aconteceu no Brasil o processo de branqueamento da população como política de Estado. O embranquecimento no Brasil não se daria por meio da violência de sociedades secretas como a Ku Klux Klan. A “redenção” ocorreria de modo pacífico, sem que muitos percebessem, com a miscigenação.
Após a proclamação da República, começaram a surgir os primeiros mecanismos oficiais que objetivavam o branqueamento e a miscigenação. Em 1890, foi liberada a entrada de emigrantes, “excetuando-se os indígenas da Ásia e África, que somente por autorização do Congresso Nacional poderiam ser admitidos”. Em 1921 e 1923, houve projetos de leis que visavam proibir expressamente a entrada de negros no país. Além disso, muitos emigrantes europeus recebiam vantagens, como lotes de terras, apenas a fim de virem para o Brasil.
O preço a ser pago por esses emigrantes seria o de embranquecer a população local. Já o preço a ser pago pelos negros que aqui estavam já à margem após a abolição de séculos de escravização xa0e totalmente jogados à própria sorte seria de danosxa0 inestimáveis à autoestima e a certeza de que a existência do seu coletivo, do seu grupo, estava mais uma vez ameaçada.
Mykaella dos Anjos, estudante de Psicologia da UFRJ, acredita que o conhecimento de que o coletivo negro poderia – e pode – ser morto a qualquer momento contribui para o adoecimento mental desse grupo. Ela destaca que é importante pensar a questão psicológica não apenas individualmente, mas também como própria da sociedade.
Vários são os mecanismos de extermínio da população negra. Alguns vêm acontecendo há séculos, outros são aperfeiçoados na atualidade com políticas e políticos que acreditam, por exemplo, que entrar em uma favela já atirando seja a solução para o fim da violência em um estado. Tais mecanismos são reforçados, inclusive, pela mídia hegemônica, que simplesmente ignora tudo isso que discutimos acima e trata os casos como isolados, não partes de um ideal de morte do povo negro.
Pensemos: A criança que morre na favela é negra, os cinco jovens atingidos dentro de um carro por 111 tiros eram negros; Claudia Silva, arrastada por um camburão da polícia até a morte, era negra. Qual nome se deve dar a uma política que, além de matar, deixa de tratar se não genocídio?