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Por uma ciência negra e feminina

As últimas pesquisas realizadas pela Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) apontam para uma Universidade negra e feminina, com mais de 62% de mulheres e 52% de negros na graduação. Porém, dados do Sistema Integrado de Gestão Acadêmica (Siga) revelam que mulheres negras ainda são minoria nos espaços de construção do pensamento científico.

Atualmente a UFRJ tem 9.855 alunas pretas e pardas matriculadas na graduação, o que configura menos de 20% do quadro, enquanto a pós-graduação conta com 1.477 estudantes dividas entre doutorado, mestrado acadêmico e mestrado profissional, menos de 12,6%.

A abertura da 10ª Semana de Integração Acadêmica (Siac) trouxe, para o centro do debate, a construção de uma ciência feminina e, também, negra. As professoras Danieli Balbi, da Escola de Comunicação (ECO); Giovana Xavier, da Faculdade de Educação (FE); e Fernanda Cruz, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF), compuseram a mesa Mulheres na Ciência e trouxeram suas experiências como pesquisadoras, em uma trajetória permeada pelas dificuldades inerentes ao gênero e à raça.

 

Da esquerda para direita: Fernanda Cruz, Danieli Balbi e Giovana Xavier.
As professoras Fernanda Cruz, Danieli Balbi e Giovana Xavier. Foto: Artur Moês – Coordcom/UFRJ

Filha de uma técnica de enfermagem da UFRJ, Dani Balbi afirmou que a universidade é, para ela, também um lugar de afeto, já que nela passou parte de sua vida e formação. Docente também do ensino médio, ressaltou que a trajetória de sua família foi marcada pela inserção das mulheres no trabalho doméstico. “Mesmo que minha mãe trabalhasse no hospital desta Universidade, durante o governo neoliberal, ela precisou realizar serviços domésticos para aumentar a renda deteriorada no período. Toda vez que eu entro em sala de aula levo minha mãe comigo”, lembra a professora, salientando os laços de afetividade entre as mulheres negras.

Durante sua fala, Balbi enfatizou que o cenário na área de Ciências Humanas, espaço mais ocupado pelo público negro e feminino, tem historicamente um menor investimento. “A ciência básica – que precisa ser livre e desprendida – transforma-se em aplicada na perspectiva de condução das políticas públicas. Foi só quando revisamos as fontes históricas e enfrentamos frontalmente as contas com nosso passado escravocrata e racista que conseguimos esforço suficiente para implementar reservas de vagas no ensino superior. Isso é pesquisa básica em historiografia e essa é a transformação da pesquisa básica em ciência aplicada”, explicou.

Segundo ela, o país precisa ser comprometido com o desenvolvimento social e com um maior investimento em políticas públicas para dirimir os efeitos de uma sociedade desigual, assimétrica, com altos índices de concentração de renda e que produz os piores tipos de racismo e misoginia. “Estar aqui nesta mesa defendendo a ciência produzida por mulheres, por pessoas negras, uma ciência sobretudo humana, só pode ter sentido se esta mesa recolocar a importância das Ciências Humanas na construção do fazer científico. Sem isso, não conseguiremos recuperar o papel da sociedade, que é o pensamento livre e comprometido com um projeto de uma sociedade justa e com uma cidadania efetiva.”

Mulher do subúrbio carioca, pertencente a uma família de classe baixa, Fernanda Cruz queria ser cientista.Segundo ela, as únicas referências de ciência na televisão eram masculinas. “No meu primeiro ano da graduação em Medicina, entrei no laboratório de investigação pulmonar, que é chefiado por uma médica, professora, cientista, imortal por duas academias, que abriu as portas para mim. Foi, mais uma vez, a importância da representação na nossa sociedade.” Após concluir o pós-doutorado fora do país, Cruz tornou-se professora do IBCCF e ganhou o prêmio L’Óreal Mulheres na Ciência pela sua pesquisa com células-tronco para tratamento de doenças pulmonares, como a asma e o enfisema.

Giovana Xavier, por sua vez, contou que entrou na UFRJ como aluna de graduação, passou pelo mestrado e doutorado também em instituições públicas e realizou estágio de pós-doutorado nos Estados Unidos, com verbas federais, tornando-se docente em 2013. Filha de professora municipal, Xavier ressaltou que, em uma perspectiva de raça, classe e gênero, a pesquisa é importante, mas ainda existem demandas anteriores, que passam pelo transporte e alimentação, para que os estudantes possam concluir a graduação.

A docente citou também a história do escritor Lima Barreto, que tentou concluir a graduação em Engenharia nos anos 1890, mas não conseguiu concluir o curso devido ao racismo. “Toda vez que cruzo o prédio do IFCS [Instituto de Filosofia e Ciências Sociais] para dar aula, eu me lembro dessa história e do quanto é relevante estar ali dentro”, afirmou. Ela destacou que, assim como o autor, o corpo e os saberes femininos e negros representam a materialidade e os desafios. “Não é simples estar aqui dentro assumindo a perspectiva das classes trabalhadoras com ênfase em mulheres negras. Isso gera reclamações, mas também gera potência.”

A docente é responsável pela idealização do curso Intelectuais Negras, ministrado no IFCS para mais de mil estudantes desde 2015. A criação do curso gerou um debate sobre a necessidade de um curso com ênfase na negritude. “Para mulheres negras, essa fala é uma violência, porque elas sabem que não são reconhecidas enquanto intelectuais.”

Segundo ela, a sala de aula tem sido o lugar mais revolucionário de produção de conhecimento científico, derivando todo o resto de seu trabalho. “As minhas alunas falam que é importante estar ali, pois suas mães deixaram de ser intelectuais negras para que as filhas pudessem ser. Ouvir isso na sala de aula e entender que é o seu corpo que materializa essa oportunidade, para que jovens negros possam transformar suas vidas, por meio da educação pública federal, é muito significativo”, concluiu.