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E se a universidade fosse para todos os estudantes?

A educação é uma das ferramentas mais potentes de transformação de mundos. É nela que engendramos presentes e futuros. No nosso país, a educação é um direito, circunscrito na Constituição Cidadã de 1988, socialmente convencionado, mas que nem todos têm, de fato. Num país onde o acesso aos direitos mais básicos é limitado, as desigualdades sociais se expressam em índices alarmantes. A quantidade de jovens que conseguem ingressar numa universidade pública é pífia em comparação àqueles que tentam e não chegam nem perto. Desprivilegiados pela própria história, sistematicamente, muitos de nós ainda temos dificuldade de ingressar e permanecer na universidade. É dessa dificuldade – fruto de uma história de desigualdades, exploração e colonização – que partimos para pensar as políticas de assistência aos estudantes.

Não é de hoje que uma das principais bandeiras do movimento estudantil é a defesa de uma política de permanência séria, consequente, universal e irrestrita. Isso é presente na Reforma de Córdoba, em 1918, nos acúmulos de fundação da União Nacional dos Estudantes, em 1938, e em muitas lutas desde então. A construção de uma nova política passa não só pela ampliação do que conquistamos, depois de anos de lutas e disputas, mas por mudanças estruturais na lógica que a universidade opera diante dos problemas de evasão e dificuldades de permanência estudantil. Na UFRJ, por exemplo, temos que repensar constantemente o papel que as Comissões de Orientação e Acompanhamento Acadêmico (COAAs) exercem na área psicossocial dos estudantes, para não deixar que essas instâncias cumpram papel policialesco e só atuem no jubilamento.

Os maiores desafios, em tempos de asfixia orçamentária e disputa sobre o sentido da educação superior, ainda passam por garantir as condições mínimas para que nenhum estudante passe o dia sem almoçar ou jantar, para que todos tenham condições de chegar à universidade, ter acesso aos materiais acadêmicos, para que todos tenham um lugar digno e seguro para morar.

A demanda por uma política consolidada de assistência estudantil ganha expressão no mesmo contexto em que as lutas pela implementação das ações afirmativas são aprovadas, no começo dos anos 2010. Fruto de anos de mobilização estudantil, surge, como Decreto 7.234 de 19 de julho de 2010, o Plano Nacional de Assistência Estudantil. O documento contém diretrizes gerais para o investimento em políticas que visem ampliar a permanência de estudantes em situação de vulnerabilidade social, que passariam a ocupar o ambiente universitário a partir da política de cotas e das políticas de expansão do ensino superior em vigor. Desde sua implementação, o movimento estudantil faz a defesa de que ele seja transformado em lei e tenha seu orçamento incrementado pelo Governo Federal: não se faz política sem verbas e a permanência dos estudantes na universidade é de total responsabilidade do Estado brasileiro.

Em 2015, os estudantes da UFRJ lançaram a campanha #3biParaPermanecer, reivindicando que o orçamento fosse ampliado para que as demandas fossem finalmente atendidas plenamente. A transferência dessa responsabilidade, que muitas universidades têm feito, para fundações, fundos privados e afins é preocupante. Tanto pela disputa de interesses que se estabelece com tais investimentos (investimento é feito com esperança de retorno, troca, retribuição) quanto pela condução da política: quem decide os rumos quando a verba é privada? Quem regula? A quem atende?

Na fila do Restaurante Universitário, trabalhadoras da alimentação servem estudantes. No prato, carne, macarrão e salada.
Cena rotineira no Restaurante Universitário: sem políticas de assistência estudantil, universidade não cumpre o seu papel. Foto: Raphael Pizzino (Coordcom/UFRJ)

Outro ponto importante de disputa, para a sobrevivência das políticas de assistência estudantil, é a politização, o aprofundamento do debate, o alargamento do olhar sobre a questão: é mais que um processo burocrático e administrativo de concessão de bolsas, ou pelo menos deveria ser. Longe de produzir um ambiente realmente democrático em termos de acesso e permanência, as políticas estudantis baseadas na concessão de bolsas são limitadas. Digo isso porque, com exceção dos Restaurantes Universitários, uma bolsa-alimentação não é suficiente diante de caras refeições no Rio de Janeiro, da mesma forma que nenhuma bolsa-moradia dará conta de pagar um aluguel e todas as contas que existem numa casa para manter uma pessoa vivendo bem. Escolhe-se, assim, tirar cópia do material acadêmico ou almoçar, morar numa casa digna ou pagar passagem e por aí vai.

Além disso, em épocas de cortes arbitrários e irresponsáveis, o próprio pagamento de bolsas fica extremamente vulnerável. Em 2015, vimos como os cortes-surpresa se manifestam: suspensão e atrasos de bolsas e corte de pagamento de trabalhadores terceirizados. A corda sempre arrebenta do lado mais fraco, já diz o ditado.

Isso não quer dizer que conclamo “morte às bolsas”, pelo contrário. Estudantes devem ter autonomia financeira para estudos complementares, acesso à cultura, lazer e afins. Mas a espinha dorsal de qualquer política estudantil deve ser uma proposta universal e ampla. As políticas estudantis devem expressar uma complexa formulação política sobre os processos biopsicossociais que atravessam a vida de um jovem em formação, ou seja: compreender apoio psicopedagógico, acesso à cultura, esporte, lazer, moradia, alimentação, transporte e saúde.

É com política de permanência que se reduz a evasão, esteja ela presente na ampliação da alimentação, moradia, espaços de convivência ou quaisquer outras ações pedagógicas, diversas, mas não dispersas num universo de garantia de direitos. Na UFRJ, a aprovação da Pró-Reitoria de Assuntos Estudantis, resultado da luta dos estudantes, foi um marco nesse sentido, uma vez que ampliou exponencialmente o potencial de debate e formulação das políticas de permanência.

Não é de hoje que esses acúmulos existem: há, pelo menos, 90 anos, a União Nacional dos Estudantes (UNE) já debatia em seus congressos questões relacionadas à situação econômica dos estudantes. Mário Prata, presidente do Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFRJ, assassinado na ditadura militar, fazia ampla defesa da uma Universidade onde todos coubessem. Hoje, o DCE-UFRJ carrega seu nome em homenagem a uma vida dedicada à luta pelos direitos de todos e todas, para que ninguém se esqueça dos tempos violentos vividos durante a ditadura.

O autor do texto, Caíque Azael, posa para foto na área do entorno do Teatro de Arena do Palácio Universitário, com um livro nas mãos
Caíque Azael, o autor do texto. Foto: Artur Moês (Coordcom/UFRJ)

Foi a partir da luta organizada dos estudantes que observamos a reabertura de bandejões, de editais de bolsa e até mesmo a implementação de novos direitos, como o Passe Livre Universitário, em 2013. Desde 2014, o DCE Mário Prata tem feito uma defesa ampla e irrestrita de que “assistência estudantil não é favor, é direito”, por meio de grandes atos nas ruas e nos Conselhos da UFRJ, campanhas, diálogos com os Centros Acadêmicos e estudantes em geral.

O acúmulo que apresentamos hoje nas lutas é resultado de décadas de mobilizações e aponta para uma radicalização das políticas de permanência como prioridade em tempos de crise. Isso porque as pessoas mais afetadas neste momento de expansão do desemprego, de pauperização extrema da população, de falta de horizontes em geral são aquelas que historicamente foram excluídas dos espaços de produção de saber: a juventude trabalhadora, negra e periférica. Dessa forma, reescrever o futuro é tomar decisões drásticas, é tomar lado, é radicalizar a defesa daqueles que também são sujeitos componentes desses espaços – mesmo que a história muitas vezes tenha dito o contrário.

Caíque Azael Ferreira da Silva integra o corpo discente do mestrado em Psicologia da UFRJ e pesquisa temas relacionados à Psicologia e aos Direitos Humanos, com ênfase em processos de militarização. Foi diretor de Assistência Estudantil no Diretório Central dos Estudantes (DCE) da UFRJ entre os anos de 2017 e 2019.