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UFRJ se posiciona sobre Future-se, do MEC

Consuni aprova nota da Reitoria, que critica pontos e se abre a diálogo, e também rejeita programa na forma como está

Sessão ordinária do Consuni

foto: Ana Marina Coutinho (Coordcom/UFRJ)

O Conselho Universitário (Consuni), órgão máximo da UFRJ, aprovou na quinta-feira, 8/8, nota da Reitoria sobre o programa Future-se, do Ministério da Educação (MEC). No texto, a Reitoria critica pontos do programa e se coloca à disposição do Ministério para diálogo.

O Consuni decidiu rejeitar, por unanimidade, o Future-se na forma como foi apresentado à sociedade. A sessão, que durou mais de quatro horas, foi presidida pelo vice-reitor da UFRJ, professor Carlos Frederico Rocha, já que a reitora, professora Denise Carvalho, ministrou aula magna na Universidade Federal de Rondônia (Unir).

 

LEIA A NOTA DA REITORIA

 

Breve histórico sobre a UFRJ 

A primeira Universidade do Brasil, que teve essa denominação, foi criada em 7 de setembro de 1920 pelo então presidente Epitácio Pessoa, o 11º presidente do país. Portanto, o primeiro diagnóstico com relação à história das universidades no Brasil refere-se a sua criação tardia, o que justifica em parte o nosso atraso socioeconômico. A Universidade do Brasil foi fundada pela união de três escolas de formação superior: a Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho (criada em 1792 e atual Escola Politécnica, considerada a sétima mais antiga Escola de Engenharia do mundo), a Faculdade Nacional de Medicina (de 1808) e a Faculdade Nacional de Direito (de 1891). A essas unidades iniciais foram se somando outras, como a Escola Nacional de Belas Artes e a Faculdade Nacional de Filosofia. Durante esses quase 100 anos de existência, a UFRJ se manteve como a maior universidade federal e oferece atualmente 176 cursos de graduação, 130 cursos de mestrado e 94 de doutorado. 

Os primeiros cursos de pós-graduação da UFRJ datam da década de 60, acompanhando o parecer Sucupira de 1965 que regulamentou a pós-graduação brasileira e foi a base para a criação da carreira docente em dedicação exclusiva (DE). A docência em DE permitiu a ampliação da participação dos docentes nas atividades de pesquisa e pós-graduação, além do ensino de graduação. Na atualidade, há na UFRJ mais de 1.200 mil laboratórios de pesquisa, 13 museus, 45 bibliotecas e 12 prédios tombados. São mais de 1.700 mil projetos pedagógicos em curso. A UFRJ possui, se não o maior, um dos maiores Parques Tecnológicos do país, fundado na década de 90, com cerca de 350 mil metros quadrados e empresas de protagonismo nacional e internacional. Em seu dia a dia, os laboratórios didáticos e de pesquisa da instituição se conectam fortemente às demandas e aos anseios da sociedade por meio de inúmeras formas de parcerias, dentre elas a interação universidade−empresa, que tomou vulto nos últimos anos e tem enorme importância para o Brasil. Ainda no contexto histórico, tem-se a formação inicial da Universidade Federal do Rio de Janeiro baseada na concepção de ensino especialista e profissionalizante, com forte controle estatal, que caracterizava as universidades francesas naquela época. No entanto, Berlim foi o berço, em 1810, de um novo modelo de universidade que se espalhou no mundo moderno, a Universidade Humboldt de Berlim. 

A partir de 1937, inicia-se também a mudança de paradigma na UFRJ, acompanhando a criação da Universidade de São Paulo em 1934, apoiada no modelo de Berlim. Ambas passam a liderar o movimento que gerou as diversas universidades de pesquisa que existem hoje no Brasil. Essas instituições são orgulhos da nação brasileira e delas depende o nosso desenvolvimento socioeconômico e cultural. Essa nossa convicção advém de dados inequívocos de que o desenvolvimento das nações modernas, que geram riqueza para os povos, depende do modelo de universidade que gera conhecimento em íntima associação com o ambiente de ensino e inovação científico-tecnológica. O resultado dessas mudanças é que as instituições públicas brasileiras respondem por mais de 95% da produção intelectual do país e têm reconhecimento internacional. 

Uma nação soberana depende de instituições de ensino superior fortalecidas e autônomas, o que é impossível sem o apoio do governo federal. Funciona assim em todos os países do mundo. As universidades europeias e americanas foram exemplos; as asiáticas têm confirmado essa premissa. 

O Plano Nacional de Educação 2014-2024, enfatize-se, prevê algumas metas que ainda não foram atingidas, com exceção da formação de 60 mil mestres e 25 mil doutores por ano, o que foi atingido antes do prazo previsto. Esse sucesso se deve ao sólido e qualificado sistema de educação superior brasileiro. As Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes) estão também dispostas e comprometidas com a melhoria do ensino básico do país, principalmente por meio da formação e qualificação de professores. Sob esse aspecto, o Programa Future-se lançado pelo MEC deveria em primeiro lugar reconhecer o grau de desenvolvimento técnico-científico das 63 universidades públicas federais. Aparentemente, o Programa foi elaborado pelo MEC sem a necessária interlocução com os reitores ou a comunidade acadêmica.

 

O Future-se

O Ministério da Educação apresentou para consulta pública o programa Future-se, que teria como objetivo o fortalecimento da autonomia administrativa, financeira e de gestão das Instituições Federais de Ensino Superior (Ifes). A abrangência do programa se refere a três eixos: 

 

1) Gestão, governança e empreendedorismo; 

2) Pesquisa e inovação; 

3) Internacionalização. 

 

Algumas premissas devem ser consideradas cláusulas pétreas que antecedem a possibilidade de adesão a esse ou qualquer outro programa de governo: 

 

1) Garantia da autonomia universitária estabelecida pelo artigo 207 da Constituição brasileira e do caráter público e gratuito do ensino superior; 

2) Defesa da integralidade da Universidade, evitando a fragmentação da sua estrutura e a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão; 

3) Garantia de financiamento público adequado para a manutenção e funcionamento das Ifes; 

4) Flexibilização dos limites de captação e uso dos recursos próprios captados pelas Ifes; 

5) Garantia de preservação das carreiras públicas nas Ifes, com a manutenção dos concursos públicos e da contratação via Regime Jurídico Único, da estabilidade e também, no caso dos professores, a preservação da dedicação exclusiva. 

 

O artigo 207 da constituição brasileira de 1988 garante às universidades a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e que obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Importante ressaltar que o dispositivo não desincumbe o Estado da provisão de financiamento público, mas tão somente garante a autonomia da gestão financeira, a partir de recursos públicos. Destaca-se que é antecedido pelo artigo 206 que explicitamente menciona a gratuidade do ensino em instituições públicas. A provisão pública de recursos é, assim, prevista e uma necessidade para o funcionamento das Ifes. 

Em linhas gerais, pelo que se extrai do Programa Future-se, a Ifes que lhe fizer a adesão comprometer-se-á com pelo menos uma organização social a ser contratada, emoldurando sua atuação com as diretrizes de governança que serão futuramente definidas pelo Ministério da Educação. No mesmo sentido, deverá aderir a um programa de integridade, mapeamento e gestão de riscos corporativos, controle interno e auditoria externa. Por essa perspectiva, ressalte-se, as Ifes já são regularmente auditadas por órgãos internos e externos de controle. 

Os contratos de gestão seriam firmados pela União e pela Ifes com uma organização social (OS), cujas atividades seriam dirigidas ao ensino, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico, à cultura e estariam relacionadas às finalidades do Programa. Para dar cumprimento ao contrato de gestão, a União e as Ifes poderão fomentar a organização social por meio de repasse de recursos orçamentários, cessão de servidores e permissão de uso de bens públicos, o que pode suscitar questionamentos acerca da finalidade estrita da transferência de recursos públicos a entidades privadas. 

São excessivamente vagas as atribuições, competências e limites das Organizações Sociais neste Programa. Não está explicitamente definida a possibilidade de essas entidades atuarem nas atividades-fim das Ifes. A flagrante ausência de clareza nesse aspecto depõe contra uma análise percuciente sobre as finalidades do Programa, que parece merecer reparo para um debate que leve à conclusão sobre sua eficiência, eficácia e efetividade no âmbito das Ifes. 

Outro aspecto que merece destaque é a previsão da criação de um comitê gestor cuja composição não está definida na proposta. No entanto, está descrito que ao comitê gestor competirá: I) Estabelecer as diretrizes das ações no âmbito do Programa; II) realizar avaliação anual de desempenho institucional, conforme disposto em regulamento, para análise do atingimento dos objetivos e metas pactuados no Plano de Ação; III) assessorar as Ifes e organizações sociais participantes na condução da política de governança e transparência; IV) garantir a estrita observância dos limites de gasto com pessoal; e V) assegurar a correta e regular destinação dos recursos do programa. A autonomia universitária poderá ser afetada pela presença deste comitê externo que parece substituir a função dos colegiados superiores das universidades. 

Pela sua configuração atual, o Future-se não se apresenta disposto a promover o fortalecimento da autonomia universitária. Contrario sensu, pode indicar retrocesso aos avanços do ordenamento jurídico pátrio garantidores das melhores perspectivas para o desenvolvimento socioeconômico, científico e cultural do país, que emergem das Ifes. Em outros termos, as disposições da proposta do Programa, nesse contexto original, tendem a romper o invólucro constitucional que protege a autonomia administrativa, didática e de gestão financeira das Ifes, que passaria a depender e ser gerida pela OS. 

O chamado Fundo do Conhecimento, proposto no programa, é também recheado de lacunas. Não há clareza sobre a composição do patrimônio que serviria de aporte inicial, não se discutem o tempo de maturação de um fundo deste tipo e como as Ifes seriam financiadas durante esta transição, não há qualquer menção aos critérios de escolha do gestor do referido fundo e de como ele será remunerado, especialmente no período de lançamento e consolidação do fundo. Caso o fundo fracasse, o retorno do patrimônio é previsto ao MEC, sem esclarecer com ficam os aportes eventualmente feitos pelas Ifes. 

Diante desse cenário, há que se reafirmar a necessidade de políticas que possam garantir o repasse completo do orçamento da Ifes previsto e aprovado pela lei orçamentária anual (LOA), o que permitiria o planejamento e funcionamento de forma mais eficiente das instituições. Além disso, deve-se permitir o uso total dos recursos próprios captados por meio de boas práticas de gestão, inclusive patrimonial. Essas ações seriam suficientes para garantir a autonomia de gestão financeira. Em conclusão, a área de educação pública não deveria ser atingida pelo teto de gastos imposto pela EC 95, sob a pena de não sobreviver nos próximos anos. O intuito deveria ser o de estimular as boas práticas de gestão financeira e patrimonial das Ifes, aumentar o financiamento das instituições públicas e não desviá-lo para uma organização privada, a OS. Jamais será possível prescindir do orçamento público adequado para o funcionamento e o integral cumprimento da missão das Ifes. 

Nessa linha, merece destaque o fato de as Ifes ostentarem com pujança a competência necessária para pensar e desenvolver suas atividades, sem necessidade de concepção de fórmulas jurídicas, carentes de comprovação fática de eficiência, para delegar à OS sua gestão, quando, de outro lado, permanecem as fundações de apoio legalmente consolidadas na gestão dos projetos de pesquisa, desenvolvimento e inovação, há décadas. 

A defesa da autonomia financeira das Ifes deve pautar o debate, nos moldes do que já está regulamentado e funcionando em algumas universidades estaduais brasileiras desde 1989, garantindo o investimento em educação, pesquisa e desenvolvimento de maneira mais sistemática. A garantia de financiamento público permite que a Ifes proceda com o adequado planejamento e as melhores práticas de governança e compliance. Certamente, o projeto Future-se deveria propor a retirada das Ifes do teto de gastos, garantir o orçamento sem contingenciamentos e estimular o desenvolvimento para impulsionar a produção científica nacional e a formação de pessoal qualificada. 

Estamos abertos ao diálogo permanente para fortalecer o ensino público, gratuito e de qualidade; porém, concluímos que há riscos no Programa Future-se relacionados à possibilidade de mudança futura da personalidade jurídica das Ifes, que são atualmente autarquias federais com a prerrogativa do autogoverno, além dos riscos à nossa integridade administrativa, pedagógica, científica e patrimonial. É nosso entendimento que o debate contínuo com os poderes federativos é capaz de constituir uma proposta que atenda as necessidades e o desenvolvimento efetivo das Ifes. Mas os princípios que elencamos devem estar assegurados, o que não é o caso nos termos propostos no Future-se. Ao contrário, o programa aponta numa direção diversa que não aborda os problemas centrais do financiamento do ensino superior em um contexto de profundo desgaste para as Ifes submetidas à profunda instabilidade orçamentária.

Reitoria da UFRJ