Leia o discurso proferido pela reitora Denise Carvalho na cerimônia de transmissão de cargos da Reitoria da UFRJ, ocorrida em 8/7. Assista na íntegra pela webTV UFRJ.
Exmos. Srs. e Sras. parlamentares e ex-parlamentares aqui presentes;
Exma. Sra. presidente da Fiocruz, Dra. Nisia Trindade Lima;
Exmo. Sr. presidente da ABC, Prof. Luiz Davidovich;
Exmo. Sr. presidente da SBPC, Prof. Ildeu de Castro Moreira;
Exmo. Prof. Walter Araújo Zin, representante do presidente da ANM;
Exmo. Sr. presidente da Firjan, Dr. Eduardo Eugenio Gouveia Vieira;
Autoridades Consulares;
Exmo. Prof. João Carlos Salles Pires da Silva, representante presidência da Andifes;
Reitores, ex-reitores e seus representantes;
Professor Alexandre Pinto Cardoso, ex-reitor da UFRJ;
Professor Paulo Alcântara Gomes, ex-reitor da UFRJ;
Professor Sergio Fracalanzza, ex-reitor da UFRJ;
Professor Nelson Maculan Filho, ex-reitor da UFRJ, ausente neste momento por se encontrar no exterior −, mas presente em nossa lembrança;
Professores eméritos;
Servidora emérita;
Senhor vice-reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro;
Senhores pró-reitores;
Senhores decanos e diretores; estudantes, professores e servidores técnico-administrativos;
Todos os meus familiares aqui presentes, os quais saúdo na figura da minha avó Sônia e da minha mãe Maria da Penha, do meu marido Alvaro e das minhas filhas Daniela e Isabela;
Meus amigos de uma vida, da Universidade e fora dela, em especial os que vieram de outros estados;
Minhas senhoras e meus senhores.
Agradeço aos intérpretes de libras;
Agradeço à equipe que organizou a cerimônia;
Agradeço ao coral infantil da UFRJ;
Assumimos hoje a Reitoria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, após cumprirmos o ritual acadêmico de investidura nos cargos de reitora e vice-reitor.
Agradecemos a administração dos professores Roberto Leher, reitor, agora ex-reitor, Denise Nascimento, ex-vice-reitora, e equipe pela lealdade e em particular pela transição. A continuidade do projeto “VivaUFRJ” será feita de forma mais transparente e com a necessária discussão, envolvendo toda a comunidade universitária, com a publicização de dados e a constante transparência nas ações.
Desde a criação da nossa Universidade, em 7 de setembro de 1920, foram empossados no cargo, até hoje, 28 reitores.
O professor Carlos Frederico e eu fomos escolhidos em primeiro turno pela comunidade universitária, o que muito nos honra. Pretendemos seguir com os projetos que apresentamos durante a campanha. Não atuaremos de maneira intransigente, e sim baseados sempre em princípios republicanos e democráticos.
A UFRJ será diferente; pretendemos ser os agentes articuladores da modernização desta instituição secular. Nossa Universidade continuará pública (destinada ao povo, à coletividade) e gratuita (não se precisará pagar; a sociedade a mantém por meio do recolhimento de impostos). Também permanecerá de qualidade, inclusiva, democrática e laica. A qualidade acadêmica tem sido garantida desde a sua criação, há quase um século. A excelência, por outro lado, deve estar no nosso horizonte.
Em 2020, a UFRJ completa 100 anos. Somos uma instituição muito jovem, quando comparada às de outros países e, embora já tenhamos demonstrado a nossa força e potencialidade, precisamos de incentivo permanente. Objetivamos o aperfeiçoamento constante que caracteriza as universidades, todas em completa sintonia com a sociedade, construindo verdadeiras “pontes do saber”. Brindaremos o nosso centenário de portas abertas, sem muros e com a participação de toda a sociedade.
Com relação à reconstrução do nosso Museu Nacional, pretendemos manter o contato constante com a sociedade, que deve ser coparticipante dos atos que culminarão com a reinauguração daquele que é um importante local de grandes atividades acadêmicas, como a pesquisa científica e os cursos de pós-graduação stricto sensu e lato sensu. O Museu Nacional vive e é nosso, faz parte da nossa instituição como uma das nossas unidades de maior destaque em ensino, pesquisa e extensão. Em 2022, comemoraremos o bicentenário da Independência do Brasil. Pretendemos devolver à sociedade brasileira e ao mundo o nosso Museu Nacional no ano do bicentenário. Com os apoios nacional e internacional, pretendemos, em breve, iniciar a sua reconstrução. Estaremos prontos para enfrentar este que é um dos maiores desafios da atual gestão.
Nas últimas décadas, a Universidade se tornou mais inclusiva e democrática, portanto, mais diversa. Para avançar como nação, o país precisa diminuir as imensas desigualdades sociais existentes e as universidades têm sido fundamentais neste processo. Não há projeto mais efetivo para a almejada mobilidade social do que a educação de qualidade. Somos mais de 50 mil estudantes de graduação, sendo a maioria com renda familiar per capita de até um salário mínimo e meio. Esses estudantes querem permanecer na Universidade e terão o nosso apoio total. As políticas de assistência estudantil devem ser fortalecidas e a modernização dos cursos, incentivada. Não é possível permanecermos com apenas 250 vagas na residência estudantil. Tampouco podemos continuar a aceitar as fraudes nas cotas étnicas e sociais. É compromisso desta Reitoria que as fraudes sejam combatidas com seriedade e determinação. Implantaremos novas políticas de assistência e permanência estudantil para promover o aumento do número de concluintes nos diferentes cursos. Oxalá não continuemos a reproduzir na nossa Universidade as diferenças de oportunidades que vemos na sociedade brasileira e que tanto nos angustiam!
É, portanto, nosso compromisso que os projetos coletivos sejam fortalecidos e incentivados.
“Todo desenvolvimento verdadeiramente humano significa o desenvolvimento conjunto das autonomias individuais, das participações comunitárias e do sentimento de pertencer à espécie humana”, pensamento de Edgar Morin, filósofo francês que esteve no Brasil há cerca de um mês e completa no dia de hoje 98 anos, com muita lucidez.
Ingressei na Faculdade de Medicina da UFRJ em 1982, durante a administração do Magnífico Reitor Adolpho Polillo, último antes da redemocratização. Tive a honra e a felicidade de participar, ainda como estudante, da escolha, em 1985, do primeiro reitor após esse período, o professor Horácio Cintra de Magalhães Macedo. Cabe salientar que também fui a primeira pessoa da minha família a concluir o ensino superior, em 1987, e a primeira diretora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, em 2010, ano do centenário do nosso fundador, o grande humanista professor Carlos Chagas Filho. Esses foram grandes marcos na minha vida. Não imaginava que o maior desafio e a maior honraria ainda estava por vir.
Pela primeira vez, em quase 100 anos, no dia de hoje, uma mulher é investida no cargo máximo da UFRJ. No total, há agora 20 reitoras de instituições federais de ensino superior no Brasil, dentre as 73 instituições, e pelo menos 24 universidades brasileiras nunca tiveram mulheres como reitoras. As mulheres exercendo cargos de destaque ainda são minoria, mas há novos ares, certamente novas atitudes vêm acontecendo. Espero que alvissareiras novidades nos esperem com as mudanças previstas para este século, como a igualdade de gênero e a necessária sociedade mais equânime. Aproveito para homenagear neste momento a primeira mulher reitora de Instituição Federal de Ensino Superior após a redemocratização, em 1987, professora Delza Leite Góes Gitaí, da Universidade Federal de Alagoas, e as 19 mulheres consideradas as pioneiras da ciência brasileira, nascidas do final do século XIX até 1930 e que atuaram em várias áreas do conhecimento. Dentre elas, destaco Nise da Silveira (médica psiquiatra, 1905), Johanna Döbereiner (agrônoma, 1926) e Maria da Conceição de Almeida Tavares (economista, 1930).
O prêmio internacional L’Oreal-UNESCO for Women in Science, criado em 1998, laureou até o presente sete pesquisadoras brasileiras, sendo duas delas da nossa Universidade: as professoras Lucia Mendonça Previatto, em 2004, e Belita Koiller, em 2005, atual diretora do Instituto de Física da UFRJ. Esses dados comprovam que as mulheres brasileiras e, em especial, as da UFRJ brilham no cenário nacional e internacional há muitas décadas. Portanto, não é surpreendente que estejamos assumindo as posições de destaque na sociedade contemporânea.
Muitos são os temas que poderíamos abordar neste dia. Escolhi, contudo, fazer uma reflexão mais profunda sobre conceitos muito relevantes na história das sociedades e fundamentais para a sua evolução: a liberdade e o respeito.
Qual a importância da liberdade em nossas vidas? Essa reflexão se torna cada vez mais necessária nos dias atuais. O filósofo Jean-Paul Sartre defende que o homem é livre e responsável por tudo que está à sua volta. Assim, nossas escolhas dependeriam daquilo que consideramos ser o bem.
Sabemos que a liberdade está diretamente relacionada aos direitos fundamentais, como os direitos individuais, coletivos e sociais, ou seja, à dignidade humana e à prática da democracia. Nas universidades, praticam-se a liberdade de expressão e a autonomia de pensamento. Garantimos aqui a pluralidade de ideias e o respeito às diferenças, premissas que caracterizam o ambiente democrático das instituições de ensino superior. Na história das sociedades, por esse motivo, o ambiente acadêmico foi constantemente atacado desde os primórdios da civilização por líderes interessados apenas em se perpetuar no poder. É mais fácil abafar a voz do contraditório do que conviver com ele.
Entretanto, nas sociedades modernas, é inquestionável o papel das universidades para o desenvolvimento socioeconômico das nações soberanas, enfraquecendo aqueles que buscam a desqualificação dessas instituições milenares. Não há mais espaço, no mundo atual, para o exílio da academia. As instituições de ensino superior são reconhecidas pela sociedade e estão evoluindo cada vez menos encasteladas, participando ativamente das transformações sociais.
Quais seriam, então, os desafios das universidades neste século? Houve enorme avanço científico e tecnológico no século XX. No entanto, as forças motrizes de alguns retrocessos na sociedade atual parecem ter encontrado espaço em novas tecnologias.
Durante séculos, os costumes e a tradição cultural de um povo influenciavam em como as pessoas pensavam e naquilo em que acreditavam, o que foi refutado por Descartes, que preconizava o uso de metodologias determinantes do conhecimento verdadeiro. Do século XVII ao século XX, o pensamento evoluiu de maneira reducionista e, principalmente, cartesiana. Ainda vivemos sob forte influência dessa forma de pensar, do dualismo, das divisões entre o certo e o errado, entre o que é verdade ou ilusão. O pensamento binário e a dicotomia entre as ciências sociais e as ciências da natureza foram também características do século XX que se mantêm e atrapalham o almejado desenvolvimento dos povos neste século.
Para agravar a situação, no século XXI, a evolução do pensamento humano foi impactada inimaginavelmente pelos avanços tecnológicos. Com o aparecimento das redes propiciado pela internet, alguns paradigmas do século XX têm sido rompidos. As redes sociais e as mídias em geral causaram mudanças sociais significativas devido às inúmeras formas de difusão da informação. O ser humano ainda não está adaptado a tais mudanças. Logo, a sociedade atual está muito confusa. As redes destruíram (ou apaziguaram) a maneira hierárquica de transmissão da informação. Assim, o sistema parecia estar se tornando mais democrático. A transversalidade, que é a base para o pensamento transdisciplinar, deveria estar evoluindo rapidamente. Parece que o pensamento e a forma de agir horizontais, que substituiriam os sistemas hierarquizados e verticais, foram sendo alterados pelo movimento circular. Estamos, assim, começando a identificar o aparecimento de “bolhas de informação”, um novo modo de ver o mundo, mais restrito e pobre. A tendência atual é de conversarmos apenas com aqueles que concordam conosco. Certamente, estamos sujeitos ao surgimento de uma sociedade mais sectária e insensível, com mais certezas do que incertezas. Eu tenho muito poucas certezas nesta vida, ou nenhuma. Como devemos agir ou reagir perante essa situação?
Como romper com essas bolhas? Não podemos permanecer escravos de nós mesmos, de nossas ideias e ideais, ouvindo apenas a voz concordante e nunca a dissonante. A pluralidade de pensamentos e o sabor do contraditório são os pilares para o exercício da democracia, da liberdade.
Bolhas são rompidas por substâncias que funcionam como surfactantes, ou seja, compostos que reduzem a tensão superficial de uma solução, como os detergentes e emulsificantes. As universidades devem funcionar como emulsificantes, capazes de romper as bolhas e diminuir a tensão superficial que está agravando a tensão entre povos, entre seres humanos.
Afinal, não há verdades absolutas em nenhum ambiente em que prevaleça a inteligência.
Destaco o poema de Carlos Drummond de Andrade intitulado “A verdade dividida”:
A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.
Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os dois meios perfis não coincidiam.
Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram a um lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em duas metades,
diferentes uma da outra.
Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E carecia optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Nas universidades, que são instituições de ensino e pesquisa, devemos avançar desenvolvendo atividades que valorizem o respeito à diversidade. Somente essas atitudes poderão reverter o curso dessa história que nos coloca contra nós mesmos.
“Somos todos feitos de átomos e palavras”, dizia o professor emérito da UFRJ Eduardo Pena Franca. O significado das palavras e a sua interpretação dependem muito do contexto. No atual mundo globalizado, vários são os desafios. Uma nova ordem social vem se estabelecendo. Essas características têm ocasionado mudanças relevantes no nosso dia a dia. Ao mesmo tempo, a Revolução Industrial introduziu substâncias químicas persistentes no meio ambiente que certamente estão modificando os nossos sistemas biológicos. Somam-se à poluição ambiental, as mudanças climáticas e a possibilidade de edição gênica. A seleção natural vem sendo modificada pelas mãos dos homens. Estaria a espécie humana se autodestruindo? Estamos certamente acelerando o processo de extinção da nossa espécie. Esse diagnóstico está feito, é irrefutável e nós precisamos agir. Na UFRJ, pretendemos contribuir com práticas sustentáveis e evoluir para uma universidade Carbono Neutro.
Na aula magna de Carlos Chagas Filho sobre cultura e ciência, proferida em 1988, Dr. Chagas proclamou: “a ciência deve ser vista por dois ângulos. A vertente que procura o conhecimento do imanente do Universo e aquela que utiliza os conhecimentos gerados”. Ressaltou a seguir que “na sociedade moderna a diferenciação das duas vertentes se faz cada vez mais, e menos acertadamente. As prioridades vão só às iniciativas que poderão propiciar lucros, o que significa o abismo do amanhã”. Nossa Universidade evoluiu bastante e tem sido bem avaliada, mas certamente podemos melhorar. A maior integração entre as áreas e a busca de soluções coletivas devem ser estimuladas. Pretendemos protagonizar os projetos que levarão o nosso país a se desenvolver como nação. Afinal, ainda temos apenas cerca de ¼ dos jovens entre 18 e 24 anos ingressando no ensino superior. O estado brasileiro deve ter a meta de pelo menos metade desses jovens terem acesso aos mais elevados níveis educacionais. A Coreia do Sul é um exemplo de transformação socioeconômica decorrente dos investimentos feitos na educação nos últimos 50 anos. Precisamos avançar no mesmo sentido, sob pena de permanecermos um país periférico. As metas contidas no Plano Nacional de Educação (2014-2024) devem ser minimamente alcançadas. As universidades de pesquisa são instituições parceiras para o desenvolvimento socioeconômico das nações. Temos produção cientifica de qualidade, certo grau de internacionalização e capacidade de interagir com empresas. É fundamental maior investimento financeiro e incentivo para que possamos atingir o desenvolvimento almejado pela nossa sociedade.
Nossos hospitais, os parques tecnológicos e os laboratórios de pesquisa têm atendido de maneira exemplar às demandas da sociedade, como ocorreu recentemente com as doenças emergentes Zika e Chikungunya. O Brasil liderou as pesquisas relacionadas à fisiopatologia dessas doenças, o desenvolvimento de métodos diagnósticos e certamente avançará na sua prevenção e tratamento. Desenvolvemos novas metodologias para diminuição dos vetores, como a introdução da bactéria Wolbachia no mosquito Aedes aegypti. É inaceitável a ideia de que devemos recuar por razões econômicas, principalmente devido ao enorme investimento já realizado em nossas instituições públicas e a capacidade instalada. Vamos agora colher os frutos da ciência de qualidade. Uma nação soberana depende de instituições fortalecidas e autônomas, o que é impossível sem o apoio do Governo Federal. Funciona assim em todos os países do mundo. As universidades europeias e americanas foram exemplos; as asiáticas têm confirmado essa premissa.
Os desafios mostram-se imensos, mas imensos também são a minha coragem e o meu otimismo para enfrentá-los. Tenho a honra de ter sido escolhida pela comunidade para dirigir a nossa grande Universidade. O maior desafio será manter o caráter público e inclusivo da primeira universidade brasileira, com a excelência que almejamos e o povo brasileiro merece. Estamos bastante dispostos e contamos com todos vocês. A educação é transformadora. E o melhor caminho para alcançarmos a mobilidade social ascendente é diminuir definitivamente as desigualdades que afligem o nosso país e impedem o nosso avanço como sociedade.
Sejamos livres para pensar e agir na direção do bem comum. Que tenhamos na nossa caminhada muito respeito à diversidade, o que nos enriquece e torna a vida muito mais suave e agradável. Nosso legado será o renascimento da esperança nesta instituição, que sustentará os pilares do iluminismo num tempo em que a irracionalidade parece prevalecer.
Que o fim deste trajeto seja o início de novos tempos. No futuro, esperamos ter avançado em direção à Universidade verdadeiramente democrática, voltada para os interesses coletivos do povo brasileiro, imbuída da missão de diminuir as nossas desigualdades sociais, nos transformando na sociedade do futuro, que não aceitará retrocessos.