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Memória

Uma liderança em ascensão

No Dia Internacional da Mulher, Projeto Intelecta conta a história da trabalhadora terceirizada Luciana Calixto

Por Patrícia da Veiga


Imagem: Ana Marina Coutinho e Ana Montez/ Coordcom – UFRJ

Pelos corredores do Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (CCMN) circula Luciana Calixto, 40 anos, trabalhadora terceirizada. Todos os dias, ela entra às 6h e sai às 16h, cumprindo – com intervalo para o almoço – uma jornada de nove horas. No prédio, sua função atualmente é a de auxiliar de serviços gerais, atuando como uma das responsáveis pela limpeza do terceiro andar. Na UFRJ, contudo, seu trabalho vai além. “Isso aqui fica cheio de gente atrás de mim”, anuncia a entrevistada do Projeto Intelecta.  

Ligada à instituição desde 2011, teve sua carteira de trabalho assinada por, pelo menos, três empresas. Assumiu um posto na portaria do auditório Horácio Macedo (Roxinho), onde começou, e atuou como almoxarife junto à administração do CCMN. Além disso, Calixto – como é chamada por onde passa – integra a diretoria da Associação dos Trabalhadores Terceirizados da UFRJ (Attufrj). Nesse espaço ela vem construindo, de forma autônoma, sua identidade política.

Ao ser escolhida como secretária-geral da entidade, passou a reunir informações sobre as condições de trabalho de sua categoria e tomou para si um papel até então inexistente: o de mediadora. Quando interpelada pelos pares, recebe reclamações que vão de salários atrasados a benefícios que não foram pagos, ou, até mesmo, acertos de contas que não foram feitos. Ela escuta, registra, apura as informações, encaminha para a Attufrj e, quando necessário, comunica também à Reitoria da UFRJ. “Há empresas corretas com os funcionários, outras não. Por isso, é preciso atenção”, comenta.

A trabalhadora não nega as dificuldades dessa dupla função. Porém, demonstra interesse e habilidade. “Muita gente diz que não é para mexer com isso, que é um trabalho a mais, que eu deveria pensar somente em mim. Mas tenho senso de justiça e gosto de olhar para o coletivo. Sou um ser raro. Brigo por causas que outras pessoas não brigariam”, argumenta. “Brigar” é modo de dizer. Com tom de voz baixo e assertivo, olhar firme e cauteloso, Calixto dialoga. E sabe de sua importância.

Militância

Tudo começou em 2015, quando a Attufrj fez uma reunião no Centro de Ciências da Saúde (CCS) para se apresentar. Na ocasião, ela reivindicou que todas as funções terceirizadas fossem contempladas pelo grupo que ali se formava. “Os auxiliares de serviços gerais sempre foram maioria e, por isso, naquela época, recebiam mais atenção. Mas eu, que era almoxarife, sugeri que isso fosse ampliado. Tínhamos, entre os terceirizados, porteiros, office boys, seguranças, gente em desvio de função, todos em situação precária de trabalho”, narra. Assim, Calixto se fez liderança: “Sou uma questionadora. Penso que, por isso, estou em evidência”.

Uma das ações que marcaram 2015 foi a paralisação dos terceirizados, após sucessivas denúncias de falta de pagamento. Calixto se posicionou. “Um encarregado do prédio me perguntou se eu estava envolvida com a greve. Não neguei e ainda argumentei: enquanto o banheiro estiver limpo, não vão perceber o quanto é desumano ficar sem salário”, relata.

O caso foi para o Ministério Público do Trabalho, que, após denúncia feita pela Attufrj a uma empresa específica, ajuizou ação civil coletiva e garantiu na Justiça a ordem de pagamento aos mais de mil empregados. “Houve um tempo em que não pagar era normal. Aquela empresa, então, foi a gota que faltava no caldeirão. Hoje isso mudou. A UFRJ tem um posicionamento e a Attufrj está em constante diálogo com as pró-reitorias”, comemora, reconhecendo a força de trabalhadoras e trabalhadores.

A partir desse momento, Calixto passou a organizar a documentação e os dados bancários de quem precisava receber. Ao seu poder de síntese, somou a disposição para ouvir cada colega e transformou tudo em planilha. Com o apoio da Universidade e das representações de outras categorias (Adufrj, Sintufrj e DCE), conseguiu garantir o cumprimento da ordem judicial. “Durante vários dias foi formada uma grande fila lá fora. Eram milhares de pessoas. Aqui dentro, as pilhas de papel só se acumulavam. Quase fiquei doida, mas foi gratificante. Sei o que é não ter o dinheiro do gás ou do aluguel, quis garantir o direito dos meus colegas”, revela. O Roxinho foi um dos cenários dessa história.

Trajetória

Antes de trabalhar na UFRJ, Calixto chegou a ser responsável pelo setor de Recursos Humanos de uma rede de postos de gasolina. Foi demitida por discordar das regras da empresa. “Não vou dizer que foi fácil chegar até aqui. Mas não tenho medo de trabalho.” Com dificuldade, conquistou a casa própria e, sozinha, fez a mudança. Vive atualmente na Vila Residencial, conseguindo chegar ao local de trabalho por meio do “azul”, ônibus interno da Cidade Universitária.

Filha de família militar e evangélica, criada na Ilha do Governador, Calixto foi casada e tem dois filhos adolescentes. Distanciou-se da Igreja ao notar o preconceito que sua comunidade tinha com a mulher divorciada. No cotidiano, acredita ter absorvido a rigidez do pai. “Venho de uma família disciplinada. Meu pai, que é bombeiro, acordava os filhos todos os dias para caminhar na orla da praia da Bica. Tínhamos de ver o sol nascer e, depois, buscar o pão na padaria”, rememora.

Calixto gosta de estudar e sonha com um diploma. Cursou Pedagogia em faculdade particular; entretanto, trancou a matrícula por dificuldades financeiras. Um de seus sonhos é ser discente da UFRJ. “Talvez, hoje, faria outro curso. Mas quero me formar”, garante.

Mulher, negra, trabalhadora

Calixto observa as relações de trabalho e percebe como as contradições se apresentam na sociedade. “Ser trabalhadora é buscar um espaço no mundo profissional. Isso tem a ver com ser mulher, pois, enquanto você busca seu reconhecimento, se depara com a desigualdade. Você não tem o espaço e o mesmo salário que o homem tem. Muitas vezes, estamos na mesma área, fazendo a mesma coisa, mas o tratamento não é o mesmo”, denuncia.

Ao refletir sobre a própria trajetória e o percurso feito pelas companheiras, aponta o racismo como prática recorrente em todos os espaços. “A mulher trabalhadora tem que lidar com o preconceito, com a violência; a mulher negra tem que lidar com o racismo. Nós temos que estar o tempo todo provando que somos melhores que a branca. Existe uma competitividade, infelizmente”. Por isso, defende Calixto, o assédio é um problema urgente a ser enfrentado no mundo do trabalho. “Hoje a mulher não tem mais medo de denunciar a violência. Rompemos muitas barreiras e precisamos ser respeitadas”. 

Na luta para institucionalizar a Attufrj, Calixto sente falta de espaço. “Precisamos de uma sede para receber as pessoas, computador e telefone para trabalhar”, diz. Para o futuro, entende que o caminho é a coletividade e almeja superar a subcontratação. “Sou a favor da estabilidade. Deveria ser para todos”.

Veja o vídeo com Luciana Calixto na WebTV da UFRJ.

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