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Museu recupera acervo do etnólogo pioneiro Curt Nimuendajú

Uma reunião de 457 fotografias e 544 negativos é parte pequena do acervo queimado no dia 2 de setembro, com o incêndio que atingiu o Palácio Imperial de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista. Junto a cartas, diários de campo, outros manuscritos, cartografias e artefatos, esse material compunha o espólio do viajante Curt Nimuendajú, adquirido pelo Museu Nacional (MN) em 1950, durante a gestão de Heloísa Alberto Torres. O lamento seria certo se, desde a década de 1980, a instituição não estivesse mobilizada para manter e recuperar essas imagens. Este texto, então, não é sobre perdas, mas sobre como a produção do pioneiro foi salva e, aos poucos, está sendo disponibilizada ao público.

Curt Unkel desembarcou no Brasil em 1903, aos 20 anos, e em 1905 chegou ao território dos Apapokuva-Guarani, a oeste de São Paulo. Ali permaneceu até 1907 e, em um ritual de pertencimento, foi batizado Nimuendajú: “Aquele que fez entre nós sua morada”. O estrangeiro assumiu o nome e, em 1922, foi naturalizado brasileiro. Suas imagens, capturadas no curso de quatro décadas de trabalho e durante 38 expedições feitas de norte a sul do país, revelam a existência e os modos de vida de dezenas de povos indígenas habitantes desta terra – alguns deles já extintos.

Foto antiga e em preto e branco do etnólogo Curt Nimuendajú que traçou o mais importante mapa dos povos indígenas no país.
O etnólogo Curt Nimuendajú que traçou o mais importante mapa dos povos indígenas no país. Foto: Baukurs

Morto em 1945 em uma aldeia Tikuna localizada no Alto Solimões, atualmente estado do Amazonas, Nimuendajú viveu também em São Paulo, Pará e Maranhão. Trabalhou para o Serviço de Proteção ao Índio (SPI), para o MN e outras instituições de pesquisa do mundo, fornecendo coleções etnográficas e arqueológicas, além de estudos detalhados sobre a língua, os mitos e a organização de cada cultura. Esse acervo coletado nas “explorações” de Nimuendajú – como o próprio referia-se ao seu ofício –, além de ter chegado ao MN, foi distribuído entre os museus de Gotemburgo, Hamburgo, Dresden e Leipzig, o Museu Paraense Emílio Goeldi e diversas universidades do mundo.

“O nome mais importante da etnografia indígena”

Nimuendajú publicou trabalhos em alemão, inglês e português. Produziu um Mapa Etno-Histórico considerado único, que foi impresso em 1981 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Tornou-se, também, objeto de estudo. Em uma base de dados que leva seu nome, há 91 trabalhos de sua autoria e 57 textos sobre sua vida e obra. Mas é possível que esse número cresça conforme se investigue melhor. Em texto de 1996 para a Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Eduardo Viveiros de Castro, professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS/MN), apresenta o viajante como “talvez o nome mais conhecido da etnografia indígena brasileira”.

Foto antiga e em preto e branco de crianças Guarani. Aldeias Guarani foram um dos primeiros lugares por onde o viajante Curt Nimuendajú passou.
Crianças Guarani. Aldeias Guarani foram um dos primeiros lugares por onde o viajante Curt Nimuendajú passou. Foto: Curt Nimuendajú

No MN, seu espólio ficou sob a tutela do Departamento de Antropologia (DA), cabendo ao Centro de Línguas Indígenas (Celin) a responsabilidade por documentos textuais e visuais. Na década de 1980, seus pesquisadores fizeram um primeiro levantamento das imagens disponíveis. Em seguida, iniciaram um processo de microfilmagem de negativos. “É preciso fazer jus à professora Charlotte Emmerich. Ela e sua equipe começaram esse trabalho”, lembra a professora Tânia Clemente, associada ao DA e coordenadora do Laboratório de Estudos do Discurso, Imagem e Som (Labedis).

Em 2004, ela e a professora Marília Facó encabeçaram outro projeto que digitalizou as 457 fotos. Em 2012, foi finalizado o DVD Índios do Brasil e o olhar de Curt Nimuendajú, que disponibiliza tanto as imagens relativas às suas viagens como textos analíticos e gravações de trechos de suas cartas – escritas ao etnólogo Herbert Baldus e ao naturalista Carlos Estevão de Oliveira, entre as décadas de 1920 e 1940. “As fotos foram digitalizadas em baixa resolução, para aparentar o estado em que estavam”, alerta Clemente, preocupada com a qualidade das imagens.

Em 2016, o Labedis partiu para outra empreitada: a captura digital dos 544 negativos flexíveis e de vidro, por meio do projeto Restauração e Análise do Acervo do Pesquisador Alemão Curt Nimuendajú (1905-1945). “Foi um procedimento delicado e trabalhoso. O equipamento tinha de ser calibrado de modo a ler a tonalidade de luz e sombra da fotografia. Assim, quando cada imagem passasse pelo processo de positivação, ficaria o mais perto possível do original”, explica a coordenadora do laboratório, destacando, nesse momento, a orientação técnica do antropólogo e fotógrafo Edney de Souza. O projeto estabeleceu cooperação com a Fundação Nacional de Artes do Ministério da Cultura (Funarte) e recebeu financiamento, por edital, do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj).

Foto antiga e em preto e branco de família na porta da tapera. Indígenas do Alto Rio Negro. Lugar em que o etnólogo Curt Nimuendajú esteve em 1927.
Família na porta da tapera. Indígenas do Alto Rio Negro. Lugar em que o etnólogo Curt Nimuendajú esteve em 1927. Foto: Curt Nimuendajú

Fundo Documental Curt Nimuendajú

Paralelamente à captura digital do negativo, Clemente planejou a criação do Fundo Documental Curt Nimuendajú – ainda em construção – para reunir e disponibilizar ao público o máximo possível de documentos sobre o viajante. “Guardei essas imagens em três HDs diferentes, logo, elas foram salvas do incêndio”, comenta a professora. Em 2018, o Labedis tenta, via Faperj, tornar positivas as imagens capturadas, aproximando os negativos do que seriam as revelações dos originais. Se os equipamentos do laboratório não tivessem se perdido no incêndio, esse trabalho já estaria em andamento.

Outra iniciativa do Fundo Documental será cotejar o material recuperado com o que existe em outros acervos do mundo. “Quero comparar o que tenho entre os negativos com o que está disponível em outros museus e analisar seus olhares. Cada imagem e cada legenda representam um olhar diferente”, explica Clemente sobre o teor da pesquisa. Não é possível estimar quantas fotos o pesquisador produziu e vendeu. Mas ele deixava rastros, numerando os negativos – o que pode ser uma pista para futuras investigações. “Entre os Kanela, onde ficou mais tempo, a numeração chega a 600. Isso significa que temos muito pouco perto do que ele fez”, cogita Clemente.

Também se debruçou sobre as imagens do pioneiro o professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Renato Athias. Em 2012, ele organizou durante a Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) uma exposição intitulada Imagens da Amazônia, com 33 fotografias sobre os índios do Rio Negro creditadas a Nimuendajú. Em texto publicado no mesmo ano e republicado em 2015, o pesquisador fala sobre a dificuldade de atribuir autoria às imagens que originalmente compõem a Coleção Etnográfica Carlos Estevão de Oliveira (Ceceo), do Museu do Estado de Pernambuco.

Foto antiga e em preto e branco de índia Tikuna. Último lugar por onde o etnólogo Curt Nimuendajú passou foi uma aldeia Tikuna, no Alto Solimões.
Índia Tikuna. Último lugar por onde o etnólogo Curt Nimuendajú passou foi uma aldeia Tikuna, no Alto Solimões. Foto: Curt Nimuendajú

Pela leitura de cartas escritas por Nimuendajú a Estevão de Oliveira, Athias constata que as imagens têm relação com uma viagem feita ao norte do Brasil em 1927. “Em uma dessas cartas ele revela ter levado negativos, e que havia feito fotografias durante sua viagem. E chegava a comentar que gastou seus últimos negativos na aldeia de Urubuquara, no Rio Uaupés. E eu sempre me perguntava onde estariam tais fotografias, pois, no texto de seu relatório de 1927 ao SPI, não continham nenhuma fotografia”, relata. Ao fim do artigo, após as análises que pôde fazer com o material igualmente raro que tinha em mãos, o professor indaga: “Onde estão os negativos?”

Clemente acredita ter a resposta. “Os negativos estavam depositados no Museu Nacional, onde, embora fisicamente foram todos destruídos, restou o que neles continha a partir de nossa iniciativa de digitalizá-los”, apresenta. O Fundo Documental Curt Nimuendajú estará disponível pelo site do Labedis e também na seção de obras raras da Biblioteca Digital do Museu Nacional. O projeto prevê também a publicação de um livro, com a análise das imagens.