Por Roberto Leher
Reitor da UFRJ
As recorrentes manifestações de racismo, agora com sentido político-eleitoral mais acentuado, redefinem o alcance ético-político da celebração da data. Os ataques às comunidades quilombolas e aos espaços de religiões de matriz afro-brasileira, notadamente umbanda e candomblé, não são manifestações episódicas. A ‘flexibilização’ na tipificação de trabalho análogo à escravidão (Portaria n. 1129, de 13/10/2017), vigorosamente combatida pela Organização Internacional do Trabalho, é parte desse movimento. O massacre, literal, da juventude negra que vive nas favelas é igualmente uma dimensão axial da vida social dos negros na sociedade de classes.
A escravidão colonial e neocolonial não se conectou apenas com os centros hegemônicos que impulsionaram a exploração agrícola e mineral no país no contexto do capitalismo comercial; marcou (e marca) a formação econômico-social brasileira, inclusive, a partir do final do século XIX, a moderna economia urbana-industrial. Como assinala Florestan Fernandes, o fim da escravidão institucionalizada “deixou atrás de si várias formas de trabalho semilivre e de trabalho escravo disfarçado que continuam a existir até hoje, mesmo em economias de plantação tidas como ‘especificamente modernas’.”[1]
A reivindicação da história das lutas contra a escravidão e do sentido do uso do trabalho escravo para a consolidação do capitalismo no Brasil são imprescindíveis para as lutas do presente. Abolicionistas engajados, como Rui Barbosa, como nos lembra Antônio Callado [2], acreditaram que a abolição requeria o apagamento de todos os registros históricos que falam sobre a escravidão, por serem vergonhosos. Muitos compartilham esse ponto de vista.
Ao contrário, as lutas dos movimentos negros (Quilombo dos Palmares, Malês, Balaiada, Revolta da Chibata, entre tantas outras lutas), as culturas e o esforço de historiadores e intelectuais negros possibilitaram a preservação de muitos desses registros e dessas memórias. A consciência negra nos ajuda a compreender e a transformar a áspera realidade de um padrão de acumulação que se vale da classificação e hierarquização racial – e de consequentes hierarquizações simbólico-culturais. O racismo não é uma herança que ainda oprime, como ecos do passado, a vida no presente: é parte do “moderno” capitalismo. As mudanças na legislação trabalhista estão aí para nos lembrar desse fato.
A presença de um grande número de jovens negros nas universidades por meio de cotas – que sofrem para permanecer estudando com dignidade, em virtude da dramática insuficiência das políticas governamentais de assistência estudantil – é uma extraordinária oportunidade histórica para desenvolver a ciência, a cultura, a história, as formas de organização, as vozes d’África, todas indispensáveis para fortalecer as lutas que a realidade brasileira exige. Que a celebração de hoje seja capaz de engendrar ações para conferir centralidade às lutas contra o racismo e o modo de produção material e simbólica da vida que se assenta sobre a negação da humanidade dos expropriados e explorados.
Rio, 20 de novembro de 17
[1] F. Fernandes, A economia escravista no Brasil, Circuito fechado, SP: Hucitec, 1976.
[2] A. Callado, Censura e outros problemas dos escritores latino-americanos, RJ: José Olympio Ed., 2006.