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Rio ficou mais desigual após megaeventos esportivos

Em março deste ano, o Tribunal de Contas da União (TCU) multou o ex-ministro do Esporte e deputado federal George Hilton pela falta de um Plano de Legado para os Jogos Olímpicos realizados no Rio de Janeiro em 2016. Instalações construídas especialmente para o megaevento, sob a justificativa de que seriam aproveitadas posteriormente pela população, estão hoje abandonadas, segundo constatou o TCU.

Após oito meses da Olimpíada e três anos da Copa do Mundo, o legado deixado por esses eventos ao Rio de Janeiro, somado à crise econômica do país, é de aprofundamento de muitos problemas urbanos, como a moradia precária e o trânsito caótico. E os gastos com eles não foram poucos. Para se ter uma ideia, em dezembro de 2014 o TCU contabilizou investimentos da ordem de R$ 25,5 bilhões com a Copa do Mundo. Já em relação aos Jogos Olímpicos e à Paraolimpíada, o custo oficialmente divulgado foi de aproximadamente R$ 40 bilhões.

Faltou reconhecer limitações

Custear um megaevento requer planejamento e conhecimento dos limites orçamentários e de investimentos da cidade e do país que o sediará. A escolha do Rio de Janeiro como sede da Olimpíada foi um marco simbólico porque, pela primeira vez, o evento migrou de países desenvolvidos para um menos desenvolvido. As três últimas edições haviam sido em Londres (2012), Pequim (2008) e Atenas (2004).

No entanto, por reconhecer os seus limites para investimentos e os problemas que enfrentaria, Roma, por exemplo, recusou sua candidatura para sede da Olimpíada de 2024.

“Especulação, lobbies empresariais, instalações nunca terminadas, estruturas abandonadas, dívidas e sacrifícios para o povo. Somos contra a candidatura de Roma para os Jogos Olímpicos de 2024 porque não vamos hipotecar o futuro dos romanos”, disse a prefeita Virginia Raggi, em texto publicado no blog do partido do Movimento 5 Estrelas.

Recursos foram concentrados na Barra da Tijuca

Para Luiz Mario Behnken, economista e fundador do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas no Rio de Janeiro, o estado tinha uma trajetória de cidade desigual e os megaeventos aprofundaram isso.

Imagem de Luiz Mario Behnken, economista e fundador do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas no Rio de Janeiro.
Luiz Mario Behnken, economista e fundador do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas no Rio de Janeiro. Foto: Diogo Vasconcellos (CoordCOM / UFRJ)

Ele cita a Baixada Fluminense como uma das regiões pouco valorizadas ao se pensarem políticas de mobilidade urbana. “Os recursos foram muito concentrados no Rio de Janeiro. O foco foi canalizado para um setor específico da cidade. A Olimpíada não foi no Rio de Janeiro como um todo. A grande concentração de investimentos se deu na Barra da Tijuca, privilegiando a especulação imobiliária, em detrimento de outras regiões.”

Embora os investimentos em mobilidade urbana tenham deixado como resultado o BRT (Transporte Rápido por Ônibus) e o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), os sistemas ainda deixam a desejar. Acidentes, veículos lotados e novos pontos de trânsito – formados por intervenções que reduziram vias públicas para dar lugar aos novos meios de transporte – são algumas das críticas.

Remoções atingiram mais de 67 mil pessoas

As remoções de famílias de suas casas para as obras dos megaeventos foram outro ponto negativo. Em levantamento publicado no livro SMH 2016: Remoções no Rio de Janeiro Olímpico, o arquiteto Lucas Faulhaber aponta que, entre 2009 e 2013, cerca de 67 mil pessoas (20.299 famílias) foram desalojadas no Rio de Janeiro por causa das obras para a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos.

Fruto da pesquisa de conclusão do curso de Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF), a obra conclui que o número é muito superior aos despejos realizados no governo de Carlos Lacerda (1961−65), que teve 30 mil remoções de pessoas e sempre foi considerado o maior adepto da política de remoções.

Os números da Prefeitura disponibilizados em sua página na plataforma de divulgação Medium são parecidos, indicando que, entre 2009 e 2015, foram removidas e reassentadas 22.059 famílias. Porém, segundo a gestão municipal, cerca de 72,2% do totalxa0 – ou seja, 15.937 famílias –xa0foram desalojados por estarem sob risco de desabamentos, alagamentos ou por morarem em condições insalubres.

Numa alternativa de evitar a remoção da comunidade pelo governo municipal, moradores da Vila Autódromo apresentaram o Plano Popular de Urbanização. O projeto, de menos de R$ 14 milhões de reais, ganhou em 2013 o prêmio internacional Urban Age Award, do Deutsche Bank e da London School of Economics and Political Sciencexa0(ver abaixo).

Jane Nascimento, de 60 anos, foi uma das ex-moradoras da Vila Autódromo que viu sua casa ser removida para dar espaço às obras olímpicas. Ela relata ter visto diversas violências de cunho político contra famílias que tinham seus direitos garantidos por estarem em uma Área Especial de Interesse Social, prevista na Lei Complementar 74, que passou a vigorar em 2005, após aprovação da Câmara de Vereadores.

Falta democratizar as decisões sobre a cidade

Imagem de Breno Câmara, pesquisador do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ.
Breno Câmara, pesquisador do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (Ettern) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ. Foto: Diogo Vasconcellos (CoordCOM / UFRJ)

De acordo com Breno Câmara, pesquisador do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (Ettern) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ, ele e alguns parlamentares foram impedidos de fazer a vistoria no local. “Eu, cinco vereadores, dois deputados estaduais e um federal tentávamos visitar as obras do Parque Olímpico devido às denúncias dos moradores de que sirenes estavam sendo tocadas à noite e água e luz estariam sendo cortadas. No entanto, fomos impedidos de entrar”, diz Câmara, que também é coordenador adjunto do Observatório de Conflitos Urbanos do Ippur/UFRJ.

Jane Nascimento conta que a luta pela resistência acabou afetando a sua saúde e a de sua família. Insônia, aumento da glicose, que afetou a visão e a audição, além da instabilidade emocional, foram alguns dos danos à saúde listados por ela.

“Durante a luta pela permanência geral das famílias na comunidade sempre me sentia disposta, mesmo sabendo que tinha pressão alta e diabetes. Tive que ver muitas covardias e sofrer junto com a minha família e moradores. Nesse período, fui reprimida, julgada, mal interpretada e nada disso me tirou da luta”, afirma.

Imagem de Jane Nascimento, ex-moradora da Vila Autódromo que viu sua casa ser removida para dar espaço às obras olímpicas.
Jane Nascimento, ex-moradora da Vila Autódromo que viu sua casa ser removida para dar espaço às obras olímpicas. Foto: Site http://racismoambiental.net.br

Para Câmara, a cidade se ressente de um processo de democratização das decisões. Sem participação da população, as remoções aconteceram e se justificaram sob a lógica da necessidade dos megaeventos. No entanto, argumenta, isso acaba por excluir grupos sociais menos favorecidos economicamente do centro de circulação da cidade.

“A cidade passa a ser tratada como uma empresa. Você tem uma substituição da política por uma negociação mercadológica”, aponta Câmara. “Nesses períodos, a Fifa e o COI mandam mais que as administrações públicas. Ocorre não só uma privatização dos espaços, como também da vida cotidiana do cidadão, além do esvaziamento da política e do silenciamento das populações mais pobres, a partir das políticas de segurança pública.”

O plano de urbanização que a Prefeitura não quis adotar. Leia mais.

O Plano Popular de Urbanização da Vila Autódromo, apresentado à Prefeitura pela Associação de Moradores, contou com a assessoria do Laboratório Estado, Trabalho, Território e Natureza (Ettern) do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional (Ippur) da UFRJ e do Núcleo de Estudos e Projetos Habitacionais e Urbanos (Nephu) da UFF.

O projeto foi enviado ao governo municipal ainda em 2013, mas o prefeito só decidiu negociar após as manifestações de junho do mesmo ano. Os moradores, então, apresentaram uma segunda versão do plano que resguardava tudo o que o governo considerava imprescindível. No entanto, as negociações coletivas foram rompidas para serem feitas individualmente com os moradores. Pressionados, muitos não tiveram saída,xa0 acabaram aceitando a indenização oferecida pela Prefeitura e deixaram o local.