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Intoxicação digital: um drama contemporâneo

Você se pega deixando de cumprir alguma atividade importante por passar tempo demais nas redes sociais com frequência? Volta para casa só para pegar o celular quando se esquece de levá-lo com você? Sente angústia ou ansiedade ao perceber que está sem acesso à internet? Caso suas respostas tenham sido afirmativas, isso pode ser o indicativo de uso abusivo das tecnologias.

Segundo pesquisa do Instituto Flurry Analytics, o número de pessoas dependentes de smartphones cresceu quase 60% no mundo entre 2014 e 2015. A quantidade de usuários que acessam os dispositivos mais de 60 vezes por dia – parâmetro reconhecido pelo instituto de pesquisas norte-americano como um problema – saltou de 176 milhões para 280 milhões em um ano.

Instituto trata possíveis transtornos

Visando orientar a população sobre o uso consciente das tecnologias e oferecer suporte ao uso abusivo, o Instituto Delete, vinculado ao Instituto de Psiquiatria (Ipub) da UFRJ, já atendeu mais de 500 pessoas desde a sua criação.

Imagem de Anna Lucia Spear King, coordenadora do Instituto Delete, que trata pessoas com dependência tecnológica.
Anna Lucia Spear King, diretora do Instituto Delete. Foto: Arquivo pessoal

Os atendimentos são realizados todas as sextas-feiras, entre 8h e 11h no Ipub, em Botafogo. O paciente passa por uma triagem e avaliação psicológica para, então, ser encaminhado a um acompanhamento psiquiátrico caso seja identificado algum transtorno.

As sessões são gratuitas e individuais. E a duração do atendimento pode variar de acordo com a avaliação feita pelo psicólogo. Na ausência de transtornos como ansiedade, depressão ou síndrome do pânico, o paciente recebe apenas uma orientação psicológica sobre o uso consciente que deve fazer da tecnologia da qual está dependente.

Por exemplo, para quem tem fobia social, o celular pode ser “o aval que lhe dê coragem para sair de casa”, diz Flávia Guimarães, mestranda em Psicologia que integra o Delete.

Delete – Uso Consciente de Tecnologi@s é o título da tese de doutorado de Anna Lucia Spear King que, após ser apresentada em 2013,xa0 teve sua proposta institucionalizada pela direção do Ipub. Ela também escreveu o livro “Nomofobia”, publicado em 2015 pela editora Atheneu, para discutir as interferências das tecnologias na vida do ser humano.

Hoje, o grupo é composto de mestrandos e doutorandos com pesquisas relacionadas ao tema que procuram o Delete para colocá-las em prática e, ao mesmo tempo, realizar atendimentos.

“O Ipub sempre procura dar um incentivo às pessoas que estão querendo desenvolver um trabalho. Ajudamos, no que for possível, toda pessoa comprometida que tem uma boa ideia, de produção séria e eticamente responsável. Apesar de todas as limitações, não falta apoio institucional”, afirma Maria Tavares Cavalcanti, diretora do Instituto de Psiquiatria.

Imagem de Maria Tavares Cavalcanti, diretora do Instituto Delete, vinculado ao Instituto de Psiquiatria da UFRJ.
Maria Tavares Cavalcanti, diretora do Instituto Delete, vinculado ao Instituto de Psiquiatria (Ipub) da UFRJ. Foto: Diogo Vasconcellos (Coordcom / UFRJ)

“Ferramenta varia de acordo com febre do momento”

Segundo Anna Lucia, diretora do Delete, o perfil de pacientes costuma ser o mesmo. Geralmente, “são pessoas inseguras, com baixa autoestima, dependentes emocionalmente do outro” ou com dificuldade de interagir socialmente, o que não é exclusivo da juventude, já que pessoas de diferentes faixas etárias procuram o grupo.

Também não costuma haver grande variação no número de atendidos, mas sim do tipo de dependência tecnológica. “Já passamos por uma época com muitos usuários abusivos de Facebook; em outra, de jogos, WhatsApp. Varia de acordo com a febre do momento”, explica.

Não existe uma plataforma digital que cause mais dependência. É o uso indiscriminado a ponto de o paciente ter a sua vida afetada negativamente que indica um quadro patológico, ou seja, associado a um transtorno. “Os impactos da tecnologia no comportamento humano podem ser de ordem pessoal, social, familiar, acadêmico, profissional ou ambiental”, diz Anna Lucia. No trabalho, por exemplo, pode ocorrer um mau rendimento profissional, ocasionando até mesmo o desligamento da empresa.

“A dependência pode ocorrer a partir do momento em que os indivíduos têm dificuldades nos seus relacionamentos sociais, profissionais e acadêmicos, trazendo prejuízos para os mesmos”, avalia a mestranda Flávia Guimarães.

“É um ambiente em que o nervosismo do dia a dia não existe”

No caso de Fabrício (nome fictício para preservar o paciente), 21 anos, o uso abusivo de jogos, como Counter-Strike e H1Z1, resultou na reprovação de período da Faculdade de Comunicação e o despertou para a necessidade de mudança. Através de uma reportagem lida por seus pais, conheceu o Delete e deu início ao seu tratamento. Ele afirma que antes mesmo de se notar como dependente tecnológico, por volta dos 10 anos de idade, seus familiares já o percebiam como tal.

“Quando eu era mais novo, não tinha nenhum outro interesse, a não ser ficar no computador. Ainda uso hoje em dia, mas com uma frequência menor, como forma de escape. É um ambiente onde o nervosismo e o estresse do dia a dia não existem. Trata-se de um momento meu, em que eu não tenho de estar me relacionando com pessoas que necessariamente não quero me relacionar.”

Imagem em primeiro plano de uma mão segurando um celular, na frente de um laptop, cujo teclado está embaixo da mão e cuja tela está atrás, em segundo plano e desfocado. A imagem representa o isolamento social provocado pelas redes sociais.
Os dispositivos móveis agravaram o cultivo da solidão nas redes sociais. Foto: Bruno Fortuna (Fotos Públicas)

Antes mesmo da reprovação, ele já notava sinais do uso abusivo que fazia dos jogos eletrônicos, como não se alimentar direito, perceber-se depressivo ou “ficar insensível para as questões sociais quando passava muito tempo no computador jogando”.

Apesar de ter começado há pouco tempo a ser atendido no Delete, ele já enxerga melhoras em sua vida, como o fato de ter acordado cedo para estar presente na primeira consulta e ter percebido por conta própria que deveria buscar ajuda, além de ter reduzido o tempo de uso de tecnologia.

Faça aqui o teste para saber se você possui algum grau de dependência nas plataformas digitais existentes.

Receber likes e atrair o interesse do outro

Para Ieda Tucherman, coordenadora do grupo de pesquisa Imaginário Tecnológico, da Escola de Comunicação (ECO) da UFRJ, passamos de uma sociedade de vínculos para a de conexões. O homem moderno só existe sob a condição de ser olhado, curtido e de receber likes. Como um princípio de autenticidade, esse sujeito existe num mercado onde é preciso atrair o interesse do outro.

Para ela, a dependência tecnológica tem como uma de suas atribuições a necessidade de controlar. É como se o sujeito não conectado se posicionasse numa espécie de exílio.

“As redes fazem um processo complicado: cultivam uma solidão colonizada de algoritmos. Isso se acentuou efetivamente com os dispositivos móveis. Quem nunca viu pessoas sentadas numa mesa de restaurante, todas teclando seus telefones? O outro físico é pura decoração. O puro gesto de deixar um celular na mesa, ao alcance da mão, impõe um outro entre duas pessoas se encontrando”, diz Tucherman.

Black Mirror: vamos todos para lá?

Em paralelo, a ficção mostra uma realidade não muito distante da observada atualmente. A série “Black Mirror” apresenta em um de seus episódios, chamado “Nosedive”, as consequências da dependência tecnológica vivida pela personagem central.

O primeiro episódio da terceira temporada mostra uma realidade onde cada indivíduo é avaliado por seu desempenho social no dia a dia. Lacie (Bryce Dallas Howard) é uma jovem obcecada por sua pontuação social em um aplicativo, que exige um nível acima de “4,2” para que ela realize a compra de uma casa. A jovem se dispõe a manipular seus relacionamentos e publicações na rede social a fim de alcançar seu objetivo.

No decorrer do episódio, podemos conhecer melhor a personagem, seus transtornos e estratégias, que a motivam a falsificar sua imagem perante os outros. E também percebemos como a lógica de uma sociedade narcisista pode impactar negativamente o modo de se projetar e de ver a vida.

Se a ficção não é otimista, a realidade parece caminhar com pequenos passos para um uso consciente e saudável das tecnologias.

10 Passos para a Desintoxicação Digital. Veja aqui.

 

1.xa0xa0 xa0Use o bom senso para que a utilização das tecnologias não se torne excessiva no cotidiano.

2.xa0xa0 xa0Fique atento às consequências físicas (privação de sono, dores na coluna, problemas de visão) e psicológicas (depressão, angústia, ansiedade) devido ao uso abusivo das tecnologias.

3.xa0xa0 xa0Dose o uso de tecnologias no cotidiano. Verifique se seu desempenho acadêmico, no trabalho, na família e/ou pessoal estão sendo prejudicados pelo uso abusivo das tecnologias.

4.xa0xa0 xa0Não troque atividades, compromissos ou encontros ao ar livre para ficar conectado às tecnologias.

5.xa0xa0 xa0Reflita sobre seus hábitos cotidianos e faça diferente.

6.xa0xa0 xa0Prefira uma vida social real à virtual. Escolha relacionamentos e amizades reais ao invés de virtuais.

7.xa0xa0 xa0Pratique exercícios físicos regularmente. Crie intervalos regulares durante o uso das tecnologias fazendo alongamentos.

8.xa0xa0 xa0Não abale o seu humor com publicações virtuais. Não acredite em tudo o que é postado e cuidado com o que você publica na internet.

9.xa0xa0 xa0Valorize suas relações pessoais, sociais e familiares. Não troque estas relações no dia a dia para ficar utilizando as tecnologias.

10.xa0xa0 xa0Jogue o lixo eletrônico no local correto. Pense no meio ambiente, recicle os aparelhos fora de uso e evite a troca frequente sem necessidade.

Fonte: http://www.institutodelete.com/comofunciona