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Postura “crítica e propositiva”

Na segunda parte da entrevista sobre a sucessão à Decania, o decano do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Marcelo Macedo Corrêa e Castro, fala sobre o posicionamento do Centro no debate político na UFRJ, a importância da área das Ciências Humanas na universidade e iniciativas que não foram adiante nos últimos oito anos.

“Não fazemos a crítica por uma posição a priori. A gente tem posições, existem também posições políticas e ideológicas que prevalecem, mas analisamos todas as situações e nos colocamos em todas elas, honrando a nossa postura crítica e propositiva. Isso é o que nos dá consistência”, afirma. 

Leia a entrevista na íntegra abaixo:

Setor de Comunicação do CFCH (SeCom/CFCH)  – De modo geral, como o senhor avalia os oito anos da atual gestão?

Marcelo Macedo Corrêa e Castro – Eu acho que o grande ponto positivo foi manter o processo que nós coletivamente iniciamos e fortalecemos, com a liderança da Suely (Souza de Almeida, decana do CFCH entre 2004 e 2008). Ou seja, o CFCH manter-se, no cumprimento dessas duas atribuições – fomentar o desenvolvimento da área e intermediar o diálogo entre a esfera superior e a as unidades – crítico e propositivo. Nós não fazemos a crítica por uma posição a priori. A gente tem posições, existem também posições políticas e ideológicas que prevalecem, mas analisamos todas as situações e nos colocamos em todas elas, honrando a nossa postura crítica e propositiva. Isso é o que nos dá consistência. Hoje, quando as pessoas elogiam o nosso trabalho, eu avalio que o grande segredo foi não se afastar da identidade que construímos. Essa identidade deve ser amadurecida, mas ela não pode perder essa qualidade. A universidade pública tenta ser assim e eu acho que o CFCH conseguiu. E é isso que traz, de uma forma geral, um retorno de respeito. A nossa posição não é uma posição “apriorística”, fundamentalista, aparelhada partidariamente, mas ao mesmo tempo não é uma posição vazia. Mesmo quando as pessoas discordam, elas ouvem o CFCH porque sabem que nós tratamos todas as questões com respeito, seriedade, analisando todas elas. E, ao mesmo tempo, não combatemos tanto as coisas. Quando combatemos, o fizemos através da proposição de coisas. Como foi o caso do Reuni (Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Públicas Federais), da Ebserh (Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares). Nós fomos lá e participamos ativamente da construção de uma proposta alternativa. Então eu acho que essa foi a grande coisa: conseguir manter uma independência e, ao mesmo tempo, manter um alinhamento com uma certa tendência política e ideológica que permite uma posição critica, independente e, ao mesmo tempo, não ficar só nos colocando como um observador crítico. Nós estamos construindo a universidade juntos. O fato de o CFCH ter ficado em muitas votações e pleitos em minoria não significa que ele não participou. Nós fizemos um papel. E acho que em outros momentos, outros centros fizeram este papel. Isto faz parte do jogo democrático. 

Houve ações importantes, como a criação do Nepp-DH (Núcleo de Estudos de Poíticas Públicas em Direitos Humanos, órgão suplementar do CFCH), a ajuda para a implantação do IH (Instituto de História, unidade vinculada ao CFCH), a Escola de Educação Infantil (órgão suplementar do CFCH), a criação do Comitê de Ética (em Pesquisa, setor vinculado à Decania do CFCH), mas acho que o grande segredo do CFCH foi manter uma linha no diálogo com a universidade. Internamente a gente procurou também manter essa linha, no diálogo com os funcionários, respeitar as regras, aquilo que não era institucionalizado, a gente institucionalizou, o que eu acho que foi outro ponto importante. Esse eu acho que é outro problema que temos aqui na universidade: as coisas são feitas de uma forma meio amadorística. Tanto para o sujeito que diz “poxa, vai me dar trabalho”, quanto para o sujeito que coloca recursos próprios para fazer o trabalho aparecer. Nem uma coisa nem outra. Acho que isso aqui não é uma mera âncora de projetos pessoais, nem é para colocar recursos que não sejam públicos. Você tem que ter uma profissionalização, uma institucionalização. 

SeCom/CFCH – O senhor falou do papel do Centro em valorizar a área. Como está a área das Ciências Humanas hoje na UFRJ?

Marcelo Macedo Corrêa e Castro – Eu acho que está muito mais valorizada do que estava doze anos atrás. É claro, parece que antes da Suely não havia nada. Havia. Acho que todos os decanos que passaram por aqui tentaram fazer isso. A gente não tem como medir aquilo que foi feito naquela época e que parece não ter dado resultado. Na verdade, o que foi feito antes calçou o terreno para o que construímos hoje. Mas estou falando das gestões das quais eu participei. Então, se você olhar em dados, a gente concretamente melhorou muito no que diz respeito à distribuição de recursos e, por outro lado, na produção acadêmica. Se você olhar dados, número de doutores, número de programas de pós, número de trabalhos na JICTAC (Jornada de Integração Científica, Acadêmica e Cultural), há muito tempo nós somos o segundo centro com mais trabalhos na jornada (o primeiro é o Centro de Ciências da Saúde (CCS). Quando estive aqui para organizar a minha primeira jornada eram 280 trabalhos inscritos. Hoje são 800! E quando você olha para a distribuição de vagas de professor, orçamento, percebe que o CFCH está equiparado aos demais centros. 

É claro que a universidade ainda precisa fazer um pouco mais de inflexão. Você ainda tem aqueles setores fundantes do tripé original: Engenharia, Medicina e Direito. No caso da UFRJ, mais plenamente. O Direito continua tendo algumas prerrogativas, mas em outras áreas, ele ficou muito defasado. Se você olha para a Medicina e a compara a outros cursos, vê que ainda há certa disparidade. Mas se olha para as Ciências Humanas no que diz respeito à produção, certamente aumentamos vagas de graduação, de pós, criamos programas, os programas melhoraram na avaliação da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior), a produção aumentou enormemente, os dados estão exuberantes. E numa avaliação política, a área das Ciências Humanas aparece num grau muito mais alto de pertencimento ao conjunto. Ela foi saindo daquela condição que a gente chama de patinho feio. Mas isso em parte tem a ver com o paradigma das ciências. As Ciências Humanas tentaram se afirmar como ciência durante, talvez, cento e tantos anos, seguindo o paradigma das Ciências Naturais. Isso foi importante para a gente sair do campo do subjetivismo desvairado, do impressionismo, interpretativismo sem nenhum critério, então a gente aprendeu muita coisa com a disciplina, com o rigor cientifico. Mas o paradigma deles não serve para nós. Ficou muito claro, nos últimos 20, 30 anos, do que a gente precisa. Estamos retomando agora paradigmas mais próprios. A Ciência Humana hoje sabe de novo que é preciso aceitar o dilema do subjetivismo, da interpretação, mas não de uma maneira tresloucada. É preciso fazer com critérios, com regras, com seus próprios paradigmas. 

No caso da UFRJ, acho que a gente tem uma repercussão disso. Foi muito importante que pessoas várias tenham ocupado cargos nos conselhos, no CEG (Conselho de Ensino de Graduação), no CEPG (Conselho de Ensino para Graduados), no Consuni (Conselho Universitário) e tenham trazido uma voz qualificada. Muitas vezes, na Faculdade de Educação (da qual o decano é oriundo), nos queixávamos de uma suposta visão pejorativa que tinham de nós. Mas será que essas pessoas nos conhecem, sabem o que a gente faz? Porque quando a gente chega e mostra o que faz, imediatamente somos bem recebidos. Na verdade, estão fazendo uma caricatura, porque não sabem quem você é. Então eu acho que também nesses 12 anos houve uma compreensão não muito articulada do fenômeno, em que vozes qualificadas das Ciências Humanas saíram dos seus pequenos nichos e ocuparam espaços dentro da universidade. E eu acho que isso, de alguma maneira, nós conseguimos construir uma imagem real: “essas pessoas são pessoas articuladas academicamente, eticamente”. Isso é muito importante. Tem um conjunto grande de pessoas que participou disso.

O mundo das ciências, e não apenas das Ciências Humanas, está desafiado por essa lógica produtivista, mercantilista. Eu não sou contra que se tenha algum tipo de parâmetro de produção. Mas eu acho que nós estamos cada vez mais aparelhados para funcionar como executores técnicos de coisas que nós não estamos determinando, nem objeto, nem metodologia, nem o sentido social daquilo. Os governos, as agências internacionais, as agências de fomento pensam nos programas, nos projetos e nos contratam por meio de editais e outras formas disfarçadas para executar ações. Eu acho isso extremamente perigoso, porque uma coisa é dialogar com o mundo da política, outra coisa é perder o principio da autonomia e da liberdade de produzir conhecimento. Então, qual é o limite entre um e outro? Eu não sei, mas temo que a gente esteja arriscando muito. Hoje em dia, os grupos mais consolidados não se colocam como propositores da produção de conhecimento. O pensamento não é “o que nós podemos pesquisar?”, mas sim, “o que as agências estão financiando”. Quando não, é o MEC (Ministério da Educação) que bate à sua porta e fala “eu fiz esse programa e quero que você desenvolva na sua região”, que é o que está acontecendo com esses programas nacionais. E aí não são só as Ciências Humanas, mas como elas atuam em Educação, em áreas de desenvolvimento social, elas estão sendo muito convocadas a participar disso. Mas acho que as Ciências Humanas estão num processo de consolidação que é mundial e acho que elas têm um papel muito importante para a gente não cair numa lógica de que “o mundo é assim mesmo, as pessoas são assim, a pobreza é um fato natural, como é o sol e a lua”. 

SeCom/CFCH – O que o senhor considera que poderia ter sido feito diferente, ou que teria ficado inacabado?

Marcelo Macedo Corrêa e Castro – Claro que tiveram muitas coisas. Mas acho que todas, mesmo aquelas que não foram concluídas a contento, foram a partir desta lógica que falei anteriormente. Então isso dá a sensação de que você cumpriu o ciclo de um projeto pensado, de uma base, de uma razão de ser. Por exemplo, a gente tinha um grande desejo de constituir uma agenda de atividades culturais, especialmente para os alunos de graduação, para atingir uma coisa que eu considero crucial na formação deles: a distância entre o capital cultural que eles têm acesso pelos seus próprios meios e aquilo que a universidade e o mundo da produção do conhecimento precisariam. A universidade é uma coisa perversa, porque ela nem abriga uma visão alternativa, a partir do capital cultural que os estudantes, por exemplo, das classes populares, traz, nem oferece a ele condições de se apropriar do capital cultural que a rege. Eu queria fazer cinema, teatro, sem nenhuma amarração acadêmica, apenas queria ter aqui uma efervescência cultural, lançamento de livros, e isso a gente não conseguiu fazer. Outra coisa que eu acho que eu sinto como uma frustração é o quanto a gente não consegue mobilizar os processos de formação para ações da própria universidade. Por exemplo, a Revista do CFCH. O meu ideal é que os estudantes de Produção Editorial fizessem a produção editorial. Os estudantes de Jornalismo produzissem o conteúdo jornalístico. A gente até conseguiu publicar artigos de estudantes, o que é um avanço. Mas não considero o suficiente. Então, isso é uma frustração que eu tenho. Era uma coisa com a qual eu sonhei e pensei que seria mais bem recebida e nós não conseguimos levar adiante.

Quando as pessoas encerram um ciclo, costuma-se dizer “poxa, mas que pena”. Aí digo que eu guardo uma boa saudade. Eu acho que é o melhor sentimento que eu guardo. Eu fiz acreditando, fiz querendo. A pior coisa do mundo é ter a sensação do “eu não fiz o melhor que eu podia”. Então eu tenho um balanço bastante positivo. Nós não deixamos que o rumo que acreditávamos se perdesse. Não foi fácil. Muitas vezes ficamos isolados. E aí quando isso acontece, a maior parte das pessoas enxerga que você está sozinho. Mas há outro desafio: o de você não se deixar levar pela tentação de que é um grande herói, um gênio incompreendido, um bastião da ética, a única pessoa que está com a razão. Mas tem o outro lado, o de você não ficar se iludindo de que só você está certo, isso também não é fácil. Então muitas vezes temos que se perguntar “será que a gente não está exagerando?”… Eu e Lilia (Guimarães Pouggy, vice-decana), que foi a pessoa que me acompanhou o tempo todo, e as pessoas que também estiveram conosco, sempre procuramos fazer esse exame para não ficarmos nem em um lugar nem em outro. Você não pode se classificar como herói ou vilão. Essa é uma visão de fora. Temos que pensar se estamos fazendo aquilo se achamos correto. E isso não significa que o correto é o que eu, Marcelo, acho correto, mas sim se perguntar “o que este conjunto de pessoas que eu represento faria”. Isso porque representamos muitas pessoas, muitas unidades diferentes. E acho que a gente conseguiu, no somatório final, ser respeitado. As unidades que também não deram grande apoio nunca foram inimigas ostensivas da Decania. E você tem que ter consciência de que você faz parte de um processo, teve coisa antes, vai haver depois. Então, temos que pensar: “enquanto eu estiver aqui, o que eu posso fazer de bom?”. Eu acho que já fiz. 
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