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Tráfico de pessoas: o invisível que precisa ser visto

Trazido à cena pela novela Salve Jorge, da Rede Globo, que termina nesta semana, o tráfico de pessoas é um crime ainda pouco conhecido no Brasil. Para discutir o problema e mostrar as iniciativas do poder público para combatê-lo, conversamos com Vanessa Oliveira Batista, coordenadora do Laboratório de Direitos Humanos (Ladih) da Faculdade Nacional de Direito (FND) da UFRJ, e com as alunas Larissa Farrazzini e Thayane Bretas de Araújo, que realizam uma pesquisa sobre o tráfico de mulheres para exploração sexual na América Latina.

O tráfico de pessoas é um dos maiores problemas da sociedade de hoje, constituindo a terceira modalidade criminosa mais lucrativa do mundo. “Hoje, calcula-se que no mundo existam 2 milhões de pessoas que são vítimas do tráfico. Essas são as estimativas oficiais. O Brasil, entre 2005 e 2011, abriu 514 inquéritos por tráfico de pessoas. Parece pouco, mas é muita gente. É só imaginar que 514 pessoas saíram de suas casas dizendo que estavam indo para Roma, Espanha ou Holanda para trabalhar como secretária executiva,  modelo ou para se casar, e simplesmente desapareceram. São 514 famílias que estão sem essa pessoa, que foi iludida pelo traficante”, afirma a coordenadora do Ladih.

Esse crime é invisível, subterrâneo, e por isso passa despercebido pela população, que se torna mais vulnerável a ele. A estudante de Direito Larissa Farrazzini explica que um dos motivos dessa invisibilidade está na perda de confiança da vítima na sociedade. “Ela não vai conseguir confiar em ninguém. Pelos depoimentos que analisamos, essa pessoa não sabe a quem pedir ajuda, a quem recorrer, então se cala, aceita a situação”, diz. Vanessa Oliveira Batista acrescenta que essa invisibilidade não é imaginária, ou criada, como muitos acreditam. “É uma invisibilidade literal. As pessoas, vítimas do tráfico, estão mais que invisíveis, estão escondidas. Ela não sai à rua como um trabalhador clandestino, por exemplo. O traficado não tem contato com o público externo”, ressalta.

Tráfico e contrabando de migrantes

Por ser uma forma de mobilidade humana, as pessoas confundem tráfico com contrabando. Existem dois tipos de migração, a forçada e a voluntária. A segunda se refere, geralmente, aos trabalhadores migrantes que vão procurar emprego em outro país. Já a primeira engloba os refugiados (políticos, econômicos, do clima) e as vítimas do tráfico.

“O contrabandista, o chamado coiote, não vai ter relação com essas pessoas depois que ultrapassarem as fronteiras. Ele simplesmente atravessa a pessoa. Pega no ponto A e leva para o ponto B, e pronto, acaba a relação ali. Nesse caso, o consentimento é relevante e a pessoa pode ser considerada partícipe do crime”, afirma Larissa. Como no caso da prostituição, quando a mulher vai para algum país trabalhar como prostituta por vontade própria, “pode ser que entre com visto falso, que contrate um contrabandista, mas vai chegar lá, frequentar a rua, escolher os programas ou então trabalhar em prostíbulo. Vai viver ali como qualquer outro trabalhador irregular”, conta Batista.

Já o tráfico de pessoas vem a ser uma grave violação aos direitos humanos, envolvendo privação da liberdade, exploração, violência, retenção de documentos. ”A pessoa traficada é iludida com uma promessa e geralmente está numa situação de vulnerabilidade. A vítima do tráfico sexual, por exemplo, é enganada. E quem pratica esse crime sabe que está praticando.” Segundo Larissa, “muitas mulheres que são traficadas sabem que vão se prostituir, mas essa não é a questão. A questão é que ela não sabe como vai ser explorada, e quando chega ao destino ela trabalha em condições análogas às de escrava, sendo explorada ao máximo”. Desta forma, o consentimento é irrelevante, porque as vítimas do tráfico não estão cientes das condições a que serão submetidas.

O que é o tráfico de pessoas?

Em 2000, foi assinado na Itália o Protocolo de Palermo, que teve como objetivo traçar as diretrizes de combate ao tráfico de pessoas no mundo. Ele estabelece três critérios fundamentais para a definição de tráfico de pessoas: atos, meios e finalidade. Os atos englobam recrutamento, transporte, transferência, alojamento e acolhimento. Meios envolvem as formas de coação: ameaças, fraude, engano, aproveitamento de uma situação de vulnerabilidade. E a finalidade implica o objetivo pelo qual as ações são executadas, englobando as diversas formas de exploração: sexual, trabalho forçado, extração de órgãos etc. É importante ressaltar que para configurar o crime não é necessário que as ações sejam executadas, basta a intenção. “O crime se consolida a partir do momento em que há a interação do traficante com a pessoa que vai ser traficada, desde o aliciamento até o transporte. E mesmo que a pessoa não chegue ao país de destino, a intenção já configura o crime, de acordo com o Código Penal brasileiro”, afirma Farrazzini.

O crime é muito complexo e, por isso, existe a dificuldade de combatê-lo. O tráfico se faz por meio de uma imensa estrutura e, geralmente, está associado às máfias. “É uma grande rede, nem todos os envolvidos cometem o mesmo crime”, diz Larissa.

A quadrilha funciona como uma grande empresa global, na qual para obter lucros é necessário que haja uma interligação de serviços, como fornecedores de documentos falsos, prestadores de serviços jurídicos, lavadores de dinheiro, redes de transporte, entre outros.

Outra dificuldade é que a maioria das vítimas não denuncia. “Uma pessoa que, em pleno século XXI, com toda a organização internacional e legislações de proteção ao indivíduo, alicia outra para explorar em regime escravo é alguém que tem ligações muito poderosas e é capaz de qualquer coisa. Então, aquelas vítimas que conseguem fugir não falam que foram traficadas. Primeiro porque têm medo de morrer e, segundo, porque temem por suas famílias. Além disso, há o medo de serem criminalizadas por serem vítimas, o que é uma questão muito interessante”, assinala Vanessa.

Em todos os países o tráfico de pessoas é um crime difícil de ser combatido. A solução é fortalecer esse debate junto à população para que ela se informe e deixe de ser enganada. O aliciamento de pessoas é feito das formas mais variadas possíveis. “As mulheres são captadas por redes de entretenimento. O próprio Facebook é filiado à Interpol para tentar detectar atividades suspeitas. O mercado da moda, as agências de casamento, as redes de telessexo e a indústria do turismo também são meios de aliciamento”, ressalta Larissa.

Tráfico de pessoas no Brasil

O Brasil vem sendo uma rota importante para o tráfico de pessoas e abriga as três vertentes do crime: origem, passagem e destino. “Há uma detecção do fluxo do tráfico pela Interpol e Polícia Federal, que fazem o levantamento das nacionalidades mais afetadas pelo tráfico e dos seus destinos. Por exemplo, as venezuelanas e paraguaias são traficadas com fins sexuais. Já as bolivianas são traficadas para trabalho forçado”, conta a coordenadora do Ladih. O Brasil funciona como país de origem de tráfico sexual de mulheres para o Suriname, a Espanha, a Itália e a Holanda. E é país de destino para o tráfico com fins de trabalho forçado.

O Ministério da Justiça divulgou recentemente que o perfil da mulher brasileira traficada varia de 10 a 29 anos, a maior incidência com idades entre 10 e 19. São, geralmente, de classe social menos favorecida. Não são casadas, não têm filhos e, como estão assumindo a postura de chefes de família dentro de casa, estão à procura de trabalho. “Quando uma menina de 12 anos se dispõe a sair do país com um grupo de pessoas para trabalhar no exterior é porque está assumindo uma responsabilidade dentro da própria casa, de manter a família. Ela vê uma oportunidade, não enxerga o crime. É ingênua”, exemplifica Vanessa. “É comum ainda que menores de idade sejam vendidos pela própria mãe”, acrescenta Larissa.

É importante ressaltar que, além do tráfico internacional, existe o tráfico interno de pessoas, mais difícil de ser percebido, devido à falta de dados. Na maioria das vezes é confundido com outros crimes. “Trazer uma pessoa do Nordeste para o Rio de Janeiro para explorá-la também é tráfico de pessoas.” Há também o tráfico intrarregional, que acontece no nosso continente, entre os países que fazem fronteiras. “Quando se fala em tráfico de pessoas, pensa-se logo em mulheres brasileiras na Espanha, em travestis na Itália. Mas, ao verificarmos os dados, constatamos um número enorme de brasileiras no Suriname e de bolivianas na Argentina. Com o Mercosul, é muito mais fácil a passagem de um país para o outro e não há tanta fiscalização”, revela Larissa.

Ações governamentais

O governo brasileiro vem tomando iniciativas, assinando e retificando tratados para melhor se adaptar ao Protocolo de Palermo e enfrentar o tráfico de pessoas. Entre as ações mais importantes, destacam-se a implementação da Política de Combate ao Tráfico, ratificada em 2006, reconhecendo a relevância do combate ao tráfico de pessoas e traçando as diretrizes desse enfrentamento no Brasil, e os Planos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. O último, implementado em 2012, trouxe a sociedade para a discussão de como combater esse crime. O Ministério do Turismo aderiu ao II Plano, com ações previstas para 2014 e 2015, a fim de combater o tráfico destinado ao turismo sexual, que pode crescer às vésperas de megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas) que atrairão milhares de visitantes ao Brasil. O plano também tem como principal característica a intersetorialização, que é essencial para o combate ao tráfico. Segundo a professora Vanessa, mais do que isso, a cooperação internacional é a forma mais relevante de enfrentamento desse crime, que é global.

Foram identificadas pela diplomacia brasileira 475 vítimas  entre 2005 e 2011, sendo 133 no Suriname, 127 na Suíça, 104 na Espanha e 71 na Holanda. Esses dados assustam, porém são conservadores, levando-se em conta que, segundo a Comissão Nacional para Erradicação do Tráfico, foram feitas 867 operações pela Polícia Federal e resgatadas mais de 25 mil pessoas entre 2005 e 2010.

“O único tipo de tráfico que tem um artigo específico no Código Penal brasileiro é o tráfico sexual”, conta Larissa. Dos 514 inquéritos instaurados pela polícia federal, foram feitas apenas 158 prisões. Mas a coordenadora do Ladih é otimista: “A Secretaria de Justiça atual está interessada em combater esse tipo de crime e ampliar a sua tipificação. E a entrada na campanha da ONU é uma prova disso”.

Campanha “Coração Azul”

No último dia 9 de maio, a campanha da ONU “Coração Azul” recebeu a adesão do governo brasileiro. O objetivo é mobilizar e informar a população sobre o combate ao tráfico de pessoas. Na cerimônia, Ivete Sangalo recebeu o título de Embaixadora da Boa Vontade para Prevenção e Combate ao Tráfico de Pessoas.

“A Ivete foi escolhida a dedo. O Nordeste sofre muito com esse crime por um motivo óbvio: ele está associado à pobreza, à vulnerabilidade e à ausência de Estado. O fato de ela ser uma cantora muito popular, principalmente na região, dá visibilidade ao crime, funciona como um alerta de que isso não existe só na ficção e que qualquer um pode ser a próxima vítima”, afirma Vanessa.

Para Larissa Farrazzini, o tráfico de mulheres para fins sexuais está muito associado ao turismo sexual, que no Nordeste é muito presente por causa da pobreza. “Isso acaba atraindo a atenção para a formação de potenciais vítimas ali, que já estão sendo exploradas por uma cultura machista, que deprecia a mulher, facilitando a ação dos traficantes”, acrescenta.

Salve Jorge

A novela de Glória Perez trouxe visibilidade para a questão “de uma forma um pouco floreada, por ser uma ficção, mas o assunto hoje está na boca do povo, enquanto antes não era falado”, avalia Vanessa. Além disso, segundo Larissa, “há apenas dois anos achar dados sobre o tráfico era muito complicado, mas agora, bem ou mal, o tema está em pauta no meio acadêmico e no governo”.

Rio de Janeiro

Segundo Larissa, a cidade do Rio de Janeiro atrai muitas redes, porque é muito turística. Uma crônica no blog do jornalista Ancelmo Gois conta a história de uma marroquina que foi interceptada pela Guarda Municipal de Atendimentos aos Migrantes no aeroporto internacional do Rio de Janeiro como possível vítima do tráfico de pessoas. Esse grupo da guarda já atendeu 135 casos de suspeita de tráfico de pessoas, apenas entre 2011 e 2012. O posto, inaugurado em 2010, realiza o atendimento e a identificação de vítimas e as encaminha para acolhimento através da rede local.

“Conversando com as pessoas do posto do aeroporto internacional, elas disseram que é difícil a identificação da vítima. Existem casos de deportação. Mas, nos casos de tráfico, eles percebem que as pessoas são muito retraídas, quase não falam, porque elas realmente não sabem em quem confiar. Elas não sabem nem que falar com o policial é uma coisa boa, porque qualquer um pode ser da máfia”, destaca Thayane Bretas.

Projeto

O projeto de extensão “Universidade pela Paz” tem como tema deste ano crimes internacionais, entre eles o tráfico de pessoas. “Nesse projeto, os alunos devem apresentar uma proposta de divulgação. A Larissa e a Thayane vão apresentar um projeto de cartilha de combate ao tráfico. Estamos procurando financiamento e contamos com a colaboração da universidade para que possamos distribuir essas cartilhas nos aeroportos e portos, e, assim, instruir a população para o enfrentamento desse crime”, explica a coordenadora do Ladih.

Quem procurar?

Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Rio de Janeiro (Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro) − Praça Cristiano Ottoni, s/nº, 6º andar, sala 647 A, Central do Brasil – Centro − Cep: 20221-250 − Rio de Janeiro/RJ. Telefones: (21) 2334- 5547/5540/9588

Posto Avançado de Atendimento Humanizado aos Migrantes 

Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro − Terminal 1, Desembarque Internacional
Telefones: (21) 3367-6070/8909-2605
e-mail:
posto.avançado@yahoo.com.br
Atendimento 24 horas

Site da Campanha “Coração Azul”
www.coracaoazul.com.br