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Evento debate o trabalho das arpilleras chilenas

No último dia 4 de junho, o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro foi palco do debate “Memória, Verdade, Testemunho e Reparação”, promovido pelo Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-DH) da UFRJ. Com a temática da violação dos Direitos Humanos, o evento teve como pano de fundo a exposição “Arpilleras da Resistência Chilena” – técnica de confecção de peças de pano feitas por mulheres nos anos de ditadura no Chile –, em cartaz entre 29 de maio e 5 de junho, com patrocínio da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça através do edital do projeto “Marcas da Memória”.

O debate contou com a presença de Roberta Bacic, curadora da exposição; da psicóloga Vera Vital Brasil, da equipe Clínico Política e Coletivo RJ Memória, Verdade e Justiça; e da professora Carolina de Campos Melo, do Instituto de Direito da PUC-RJ, e conselheira da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. A professora Mariléa Porfírio, diretora do Nepp-DH, coordenou o debate.

Mariléa elogiou a iniciativa do projeto e definiu como objetivo do evento a discussão sobre a memória e a verdade, e que isto era também falar de justiça. “Não podemos ter só memória e verdade apresentadas, mas também tem que existir justiça. Este debate, então, está na ordem do dia e ele tem que ser contado e repassado aos jovens e aos não-jovens, que têm uma história a contar”, declarou.

Já Roberta Bacic explicou que a exposição “Arpilleras” teve início após o trabalho da Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação do Chile, no qual ela aprendeu, através de testemunhos, que era possível ver no cotidiano dos cidadãos como a repressão política afetou a vida de mulheres, famílias e comunidades. Nesse contexto, Roberta organizou a exposição que evidencia tais aspectos e que funcionou, segundo ela, para chamar a atenção e conferir peso às Comissões da Verdade chilenas.

A exposição conta com trabalhos do período entre 1973 e 1991, e abre ao público alguns testemunhos das artesãs. Ao ler alguns deles, a curadora mostrou que cada mulher tinha uma razão diferente para costurar, mas todas elas o faziam para exprimir o sentimento de perda – principalmente por familiares desaparecidos – e luta pela justiça. “Eles mostram aspectos relativos ao social, emocional e à memória, e também como podemos reconhecer coisas comuns em conflitos em todas as partes do mundo”, disse.

Roberta contou que trabalhos semelhantes também surgiram na Irlanda do Norte como forma de protesto. As arpilleras atuais, que denunciam conflitos sociais, devem vir ao Brasil em setembro, para a realização da exposição itinerante “Rebordando Conflitos”, que reunirá peças têxteis do mundo todo.

Arpilleras contra o esquecimento

Vera Vital Brasil defendeu a ideia de que “não há clínica sem uma visão política no tratamento dos afetados diretamente ou indiretamente pela agressividade do Estado”. De acordo com a psicóloga, o Estado não só violou direitos no período da ditadura militar, mas “continua violando, mesmo que de maneira diferenciada, pois, no período atual, a violação não acontece de forma direta pelo Estado, como na ditadura”. Vera declarou ser contra o “esquecimento” dos crimes daquela época, e desmitifica a ideia de que havia dois lados. “Não houve guerra, houve uma resistência daqueles que não aceitaram o golpe militar. Nas histórias de Comissões da Verdade do mundo inteiro esse tema foi fundamental para que o Estado arcasse com as consequências de seus crimes”, enfatizou. A psicóloga afirmou ainda que o Estado tem uma dívida histórica com as vítimas, e que precisa se responsabilizar, mesmo nos dias de hoje, pois, além do compromisso com a proteção do indivíduo, o descaso para com as vítimas implicaria numa ideia de “culpa coletiva”, como se “todos nós fôssemos responsáveis pelos horrores daquela época”.

Vera Vital Brasil descreveu o trabalho da equipe Clínico Política, que ajuda na reconstrução da vida das vítimas, e destacou sua importância para a sociedade, já que esta foi afetada pelo autoritarismo. A psicóloga explicou que a equipe também dá suporte aos que querem depor na Comissão da Verdade para se ter um registro sob a ótica das vítimas, já que a maior parte do material analisado provém da visão do governo militar. Por fim, ela destacou a importância da participação das vítimas e da sociedade civil na pressão pelas investigações e na cobrança por seriedade na atual comissão.

Na sequência, Carolina de Campos Melo, coordenadora do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-RJ, expôs as definições do conceito de “anistia”, que, segundo ela, ainda é compreendido de maneira ambígua no Brasil. “De um lado, temos a anistia como ‘esquecimento’ – da lei de 1979, mas, a partir de 1988, temos a anistia como ‘liberdade’, requerida no início da redemocratização do Brasil, quando da tentativa de retorno dos exilados ao território nacional, e o conceito, também iniciado em 1988, que identifica anistia como ‘reparação’”, explicou.

A professora fez menção a algumas ações judiciais feitas por familiares de vítimas políticas na tentativa de cobrar satisfações do Estado, ou seja, ir contra a anistia como “esquecimento”. Algumas delas, inclusive, com interferência da esfera internacional, semelhante ao que ocorreu em comissões de outros países. Embora Carolina tenha exposto que, na maioria das vezes, a Justiça tome decisões desfavoráveis às vítimas, ela acredita que, atualmente, o Brasil vive uma mudança no que diz respeito à maneira de se compreender a anistia. “Me parece que é este o momento em que as fissuras do muro da negação parecem romper-se”, afirmou.

Liberdade e reparação

Depois de mostrar dados sobre o crescimento das denúncias e processos na Justiça, Carolina explicou que isto se deve ao outro lado do conceito: o da “liberdade” e da “reparação”, surgido em 1988. De acordo com ela, este permeia os trabalhos da atual comissão. “É claro que ainda esbarraremos com os argumentos de que a lei de anistia protegeria esses crimes cometidos antes de 1979, mas me parece que a comissão tem percebido as obrigações que devem reger as suas atividades, especificamente no que se refere a crimes contra a humanidade. Portanto, esta comissão tem um poder que vai além da apreciação de requerimentos administrativos”, afirmou.

Depois de comentar sobre as “caravanas de anistia” – que funcionam como pequenas comissões e utilizam o conceito de “reparação” para investigar os crimes no local onde ocorreram –, a professora afirmou que o sucesso da atual comissão depende da comunicação com as instâncias que possibilitaram a construção da Verdade no Brasil, como o projeto “Brasil nunca mais!”, que, segundo ela, “contribuiu para criar uma fissura no muro da negação, especificamente das torturas”. Ela também destacou o diálogo com as outras comissões para uma ampliação das possibilidades políticas, já que “a Verdade não é novidade no Brasil. O que se pretende com a Verdade (nesta comissão) é a ruptura desses muros de negação”.

A professora encerrou citando o exemplo do Chile, que teve quatro Comissões da Verdade, e perguntou a Roberta Bacic sobre o seu papel na comissão da qual participou. A curadora respondeu afirmando a inexistência de um momento “certo” para se instalar uma comissão, devido à urgência de se julgar os crimes. Disse também que, embora precária, a primeira comissão funcionou como “a ponta de um iceberg” e serviu de base para as seguintes. “Essa instância deixou um produto de três volumes com análises históricas: o consenso de que havia muitos documentos da censura para discutir, argumentar e o levantamento dos feitos relativos à ditadura militar. Assim, com uma relação dos casos emblemáticos e o número de vítimas, fez-se um apanhado importante”, disse. 

Os resultados da primeira comissão possibilitaram a instauração da Corporação Nacional de Reparação e Reconciliação, da qual Roberta fez parte. Segundo ela, ainda não aparecia o termo “justiça”, mas a expressão “verdade” já estava presente. Ela conta que esta comissão foi um grande passo em relação à primeira, pois o trabalho foi bastante preciso. Além de informar sobre os atos públicos e não públicos, os depoimentos já feitos eram reconsiderados, assim como os de familiares e vítimas que já haviam deposto. Todos os processos policiais também passaram a ser disponibilizados.

Roberta afirmou ainda que a abertura de dados foi “uma prova de que, num dado momento, o aparato do Estado estava a serviço da investigação do que ele mesmo havia feito”. Ela falou mais sobre o trabalho, que não se restringiu à apuração de documentos na Justiça, mas se estendeu ao registro civil, às escolas, hospitais e comunidades. Além disso, Roberta revelou  que as investigações também contaram com a ajuda de funcionários remanescentes do governo.

O debate se encerrou com a resposta de perguntas e com a conclusão geral da responsabilidade do Estado para com as vítimas. Mais uma vez também foi defendida a necessidade do conceito de anistia como “reparação” para que haja sucesso na atual Comissão da Verdade.