Geógrafo britânico ministra palestra no Ifcs-UFRJ, analisa a crise global e sugere alternativas anticapitalistas.

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Memória

David Harvey e a “cidade socialista”

Geógrafo britânico ministra palestra no Ifcs-UFRJ, analisa a crise global e sugere alternativas anticapitalistas.

Geógrafo britânico ministra palestra no Ifcs-UFRJ, analisa a crise global e sugere alternativas anticapitalistas

 Mais de mil pessoas estiveram, na última quarta (29/2), no campus da UFRJ no Largo de São Francisco, no Centro. Três salas do prédio, além do pátio no andar térreo, estavam lotadas e as filas davam voltas pelos corredores. O motivo era a presença do geógrafo e professor britânico David Harvey, de passagem pelo Brasil para o lançamento do livro O enigma do capital e as crises do capitalismo. Harvey, que já se apresentara na PUC-SP e na USP, ministrou uma palestra no Salão Nobre do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (Ifcs), mediada por Marco Aurélio Santana, diretor interino do Ifcs, em que fez uma síntese da obra.

A partir da teoria marxista, O enigma do capital busca explicar a crise financeira mundial iniciada em 2007 e que hoje se reflete, sobremaneira, em diversos países europeus. De acordo com Harvey, em vez de “resolver suas crises, o capital as contorna”, e citou a questão ambiental e a habitação como exemplos. Recorrendo à análise de Engels, o professor da City University of New York lembrou que, no século XIX, problemas de moradia já suscitavam crises no sistema capitalista.

Para o docente, os “contornos” do capitalismo se dão de duas maneiras: de um setor para o outro e de forma geográfica. No primeiro caso, Harvey ilustrou o exemplo atual, em que a crise do setor imobiliário transladou-se para o sistema financeiro e este, por sua vez, para o Estado. “Na década de 1990, Clinton levou os ‘benefícios’ da hipoteca para pessoas de baixa renda que pensaram se tratar de uma política generosa. No entanto, quando elas não podiam mais pagar, as instituições financeiras se viram em apuros. Muitas quebraram e, então, precisaram recorrer ao Estado”, resumiu. “O reflexo agora está se vendo na Europa, onde países de economia mais forte como a Alemanha estão pregando ‘medidas austeras’ a países mais frágeis, como a Grécia. Essa expressão significa dizer ‘faça as pessoas pagarem’. O discurso sugere que os gregos são preguiçosos e merecem o problema. No entanto, dados mostram que os gregos trabalham o dobro de horas diárias do que os alemães”, afirmou. “A imposição de ‘medidas austeras’ foi o mesmo que aconteceu no México em 1982. O FMI fiançou o Estado para que ele pagasse os bancos em dificuldade e forçou a diminuição do padrão de vida dos cidadãos mexicanos”, completou Harvey.

A crise atual também se manifesta geograficamente, segundo o geógrafo. A partir da Califórnia, estendeu-se para os demais estados americanos até atingir outros países, parceiros comerciais dos Estados Unidos. “Nos primeiros meses de 2009, a China perdeu 30 milhões de empregos. No entanto, em apenas nove meses, conseguiu criar 27 milhões. Como ela fez isso? Não apenas por meio de indústrias de exportação, mas também por  medidas keynesianas, como investimentos de infraestrutura. Foram construídas cidades inteiras, onde, até hoje, não existe ninguém morando. Além disso, a China proibiu os bancos de emprestar dinheiro. E funcionou. Se você fosse empresário chinês desafiaria o governo? Já nos Estados Unidos isso não acontece”, expôs.

Harvey, contudo, questiona o fôlego chinês para escapar à crise capitalista atual. “O mercado imobiliário na China está num ótimo momento. Nos últimos cinco anos, o país consumiu metade das reservas de ferro do mundo. Não há paralelo na história. Em 1945, os Estados Unidos também usaram essa estratégia para fugir da crise, mas não nessa proporção. Mas quão estável é a expansão chinesa? Se ela acabar, terá fortes impactos nos seus parceiros comerciais, entre eles os países da América Latina”, citou.

Cidades

De acordo com o pensador britânico, a estrutura de poder do capitalismo baseia-se no crescimento das cidades e da urbanização. Harvey explica que a crise de 1929 também foi precedida de uma grande expansão imobiliária, que levou a um colapso na indústria da construção civil. “Atualmente”, explica o docente, “os políticos são dependentes dos empresários da construção, que, por sua vez, são dependentes dos proprietários de terra. O capitalismo está controlando o processo de urbanização”, afirmou Harvey.

Esse processo, para o professor da City University of New York, está levando a uma forte resistência que pode ser percebida com o movimento Ocuppy. “Isto está transformando a vida das pessoas, o que não é necessariamente melhor. Se o interesse do capital é controlar o processo de urbanização, eles vão fazer de tudo para controlar todas elas, o que  dará origem a uma luta de classes”, analisou. Harvey lembra movimentos importantes que tiveram origem nas cidades, como a Comuna de Paris, a revolta em Seattle, em 1990, e recentemente no Cairo. “As pessoas passaram a perceber que as cidades são controladas pelo Estado, segundo interesses capitalistas. Nós começamos a pensar o quão significativos são esses movimentos”, explicou o geógrafo.

Para o docente, o movimento teve início a partir de tendências anarquistas e autonomistas. “Eram pessoas ligadas às artes a à cultura. Os trabalhadores não estavam lá. Eram interesses muito particulares, baseados em certos princípios de organização. Conseguiram apontar para os banqueiros de Wall Street os males que tinham sido feitos, mas que foram esquecidos pela crise financeira”, recordou.

Harvey acredita que esses movimentos podem ser mais bem articulados para que deem origem, de fato, a mudanças estruturais. “Passamos a ver as redes de cidades envolvidas em ações políticas: Roma, Barcelona, Londres, Varsóvia. Essa rede urbana é um lugar interessante para pensar a crise. Imagine se, um dia, nós nos organizarmos e deixarmos de ir trabalhar?” No entanto, para o professor, a forma de organização, essencialmente horizontalizada, não é a ideal para criar uma alternativa anticapitalista, de acordo com o geógrafo. “Eu digo para alguns dos meus estudantes que estão envolvidos nesse movimento que, às vezes, é preciso também ser vertical para se transformar em uma presença política mais forte. Pense em uma torre de controle de voo se fosse completamente horizontalizada”, sugeriu. “É preciso mesclar horizontalidade e verticalidade. Um exemplo aconteceu na cidade de El Alto, na Bolívia, em que os cocaleiros se articularam e combinaram as duas formas de organização. O movimento Ocuppy precisa se afastar tanto das ideias fetichistas de que apenas a horizontalidade funciona como da ideia de centralidade e verticalidade da velha esquerda comunista”, completou.

Ao final, o geógrafo lançou a ideia de que é possível, sim, criar uma alternativa ao atual modelo capitalista: “É preciso, primeiro, se organizar em torno de um projeto anticapitalista, uma agenda ambiental, de melhoria de condições de trabalho etc.”. “Temos que pensar na reurbanização do mundo, pensar na ‘cidade das pessoas’ ou na ‘cidade socialista’. Mas como criar essa cidade em cima das ruínas da cidade capitalista?”, indagou o pensador, deixando a proposta para a plateia e encerrando a exposição.

Clique aqui para assistir ao vídeo produzido pelo professor Michel Misse, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do Ifcs-UFRJ.