A Lei da Anistia continua a ser interpretada como há 30 anos e adia a punição das arbitrariedades cometidas pela ditadura.

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Memória

Punições adiadas

A Lei da Anistia continua a ser interpretada como há 30 anos e adia a punição das arbitrariedades cometidas pela ditadura.

No último dia 29 de abril, o Brasil deu mais um sinal de que ainda é cedo para mexer nas feridas do passado. Por sete votos a dois, o Supremo Tribunal Federal (STF) negou a ação proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que questiona a abrangência da Lei da Anistia para casos de tortura, assassinatos e desaparecimentos durante a ditadura militar, instalada no país em 1964 e que perdurou até 1985.

Promulgada em 1979, a Lei nº 6.683 reintegrou brasileiros punidos pelos militares nos anos anteriores e representou um importante passo na direção da abertura política do país. Para diversos movimentos organizados, entretanto, a lei não foi interpretada da melhor forma. Isso porque ela ofereceu anistia tanto para militantes da resistência, como para os agentes da ditadura que, por décadas, promoveram prisões, torturas e assassinatos contra aqueles que não eram favoráveis ao sistema.

Com a decisão do STF, a Lei da Anistia continua a ser interpretada como há 30 anos e adia a punição das arbitrariedades cometidas pela ditadura. Cecília Coimbra, presidente do Grupo Tortura Nunca Mais, e Mariléa Venância, diretora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (Nepp-DH) da UFRJ discutem a questão:

Cecília Coimbra
Presidente do Grupo Tortura Nunca Mais


A interpretação hegemônica que foi dada pelos juristas da ditadura, em 1979, foi a que considerou que o parágrafo da Lei da Anistia sobre crimes conexos instituía anistia também aos torturadores. Nossa proposta de Lei da Anistia, com anistia ampla, geral e irrestrita, foi negada por cinco votos, em 1979. A interpretação em vigor hoje é a deles. A gente queria que, neste momento democrático, fosse dada outra interpretação à Lei e não uma revisão como está sendo propagado pela grande mídia.

Os sacerdotes da ditadura querem defender que militantes e militares torturadores estão no mesmo patamar, mas isso é absurdo. Mesmo os militantes que não passaram pela prisão foram processados. É absurdo dizer que os dois lados devem agora responder, porque um dos lados já respondeu. E muito. Provas disso são os presos, os desaparecidos e os mortos durante a ditadura. Os torturadores, por outro lado, nunca mostraram a cara. Como uma pessoa pode ser anistiada se seus crimes nem foram publicizados?

 “Os sacerdotes da ditadura querem defender que militantes e militares torturadores estão no mesmo patamar, mas isso é absurdo. Mesmo os militantes que não passaram pela prisão foram processados. É absurdo dizer que os dois lados devem agora responder, porque um dos lados já respondeu.”

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) não nos desanima de maneira alguma a continuar lutando por essa interpretação. Nenhuma decisão de um tribunal, por mais respeitável que ele seja, pode parar a História. Pretendemos apelar para organizações internacionais. É o que fizemos com o caso da Guerrilha do Araguaia. Desde 1982, nós, familiares de desaparecidos da guerrilha, entramos com processo para abertura dos arquivos. Sucessivos governos ignoraram a questão. Entramos, então, com processo contra o governo brasileiro junto à Corte de Direitos Humanos da Organização de Estados Americanos (OEA), o pedido foi aceito e será julgado no próximo dia 21 de maio. Fizemos isso para chamar a atenção da opinião pública internacional. Resolvida a questão, pretendemos encaminhar também a Lei da Anistia para cortes de organismos internacionais, porque a decisão do STF fere acordos dos quais o Brasil é signatário. Fere, principalmente, aqueles relacionados à tortura.

À época da aprovação da Lei da Anistia, foi feito um pacto entre o governo e os militares e civis que deram dinheiro à ditadura e colaboraram com a tortura. Não esperávamos que o STF fosse romper com esse pacto justo agora, em um ano eleitoral. De toda forma, continuaremos lutando, caso contrário, o povo brasileiro corre o risco de perder sua história, de perder a oportunidade de saber o que aconteceu nesse período. E um país que não conhece a própria história não consegue entender o seu presente.

Mariléa Venâncio
Diretora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ

Independentemente da decisão do STF, a luta por uma interpretação mais justa da Lei da Anistia vai continuar. Ela continuará seja pela sociedade civil, seja por movimentos organizados que já vinham exigindo que a Lei da Anistia seja, de fato, aplicada contra os agentes da tortura do Regime Militar de 1964.

A tortura é um crime de lesa humanidade e, portanto, não é objeto de anistia. Nenhuma lei absolve a tortura. Neste exato momento, deve haver alguém sendo torturado. E os movimentos organizados são contrários tanto à tortura de outrora como à praticada hoje em dia.

“A tortura é um crime de lesa humanidade e, portanto, não é objeto de anistia. Nenhuma lei absolve a tortura. Neste exato momento, deve haver alguém sendo torturado. E os movimentos organizados são contrários tanto à tortura de outrora como à praticada hoje em dia.”

Creio que a sociedade civil como todos os movimentos organizados, inclusive a universidade, através de seus organismos de representação, devam se posicionar contra a impunidade, contra a banalização da pobreza, situações que levam a momentos de prisão e de tortura, dirigidos, principalmente, a trabalhadores da periferia, moradores de comunidades de baixa renda etc.

A luta é para fazer justiça em relação a um período passado, mas se mantém atual nos dias de hoje. A sociedade não pode se calar diante do que acontece nas prisões, por exemplo.

O Brasil não julgou criminalmente quem matou ou torturou durante o Regime Militar, mas prendeu, torturou e matou aqueles que fizeram resistência à ditadura. Cerca de 50 mil brasileiros foram presos de 1964 a 1985, mais da metade foi torturada. Essas pessoas têm o direito de ver o Estado brasileiro responsabilizar os torturadores. Não é revanchismo. O que se pede é que venha à tona tudo que foi feito. E, para tanto, deve que haver pressão da sociedade.

Se isso não acontecer, a sociedade perde. Mas quem perde mais é a democracia, a cidadania. Golpeia-se a efetivação do Estado democrático. O Brasil deixa de mostrar sua história de verdade e continua cúmplice da mentira.