Desde que assumiu a Prefeitura do Rio de Janeiro, em 2009, Eduardo Paes adotou o chamado “Choque de ordem”. A política consiste na repressão do mercado informal e em ocupações urbanas em diversos pontos da cidade. Em 2010, o prefeito prometeu colocar ordem no Carnaval de rua do Rio de Janeiro, coibindo o comércio ambulante durante o Carnaval. Os trabalhadores protestam e denunciam abuso de poder. Apesar de incômoda para uma parcela da população, a iniciativa agrada a muitos.
Para instaurar a ordem na cidade durante os dias de Carnaval, a Prefeitura promete, entre outras coisas, instalar banheiros químicos e promover medidas de conscientização sobre os malefícios da combinação de álcool com direção. De acordo com muitos especialistas e pesquisadores, entretanto, a solução para o problema da desordem urbana, caso ele realmente exista, reside no desenvolvimento de políticas públicas que beneficiem todas as regiões da cidade, e não apenas as zonas mais abastadas. A questão do choque de ordem vai além das ações em si; está ligada à forma como vem sendo aplicada e quem ela beneficia.
Para tentar compreender melhor como o choque de ordem interfere na dinâmica da cidade e como será o Carnaval com a adoção das novas medidas, o Olhar Virtual conversou com os professores Marco Antonio da Silva Mello, coordenador do Laboratório de Etnografia Metropolitana do Ifcs, e Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro, coordenador do Observatório de Metrópoles (Ippur/UFRJ).
Marco Antonio da Silva Mello
Antropólogo e coordenador do Laboratório de Etnografia Metropolitana (Ifcs/UFRJ)
“A política do choque de ordem é voltada para a fobia que as classes, com um estilo de vida aburguesado, têm em relação ao estilo de vida que não querem para elas.”
“A Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, ao colocar em prática a ideia do choque de ordem, seja no Carnaval ou em outro momento qualquer, nada mais quer do que colocar em prática as leis que já existem e que não são cumpridas. A essa execução quer se dar um ar de novidade, que não é verídico. No entanto, a primeira pergunta que deve ser feita é: ordem para quem? Cabe levantar várias interrogações na tentativa de compreender o que está sendo colocado como ordem nas pretensões do legislador e do dirigente. No caso, o prefeito do Rio de Janeiro, e onde essas ações estão ocorrendo e de que maneira estão ocorrendo.
Nesse choque de ordem, como todo processo de organização, ordenamento ou reestruturação de alguma coisa, há personagens determinados a organizar e erradicar outros da cidade. Isto é, querem exorcizar alguns elementos da imagem de uma cidade que se quer instituir. Isso aconteceu também no passado com a reforma urbana do prefeito Pereira Passos (gestão entre 1902 e 1906).
O choque de ordem virou um grande artefato simbólico para a zona sul do Rio de Janeiro. Há quem diga que a administração municipal, em conjunto com a estadual, quer transformá-la em uma nova Mônaco, separada do restante da cidade. O problema é mais complexo que o beneficiamento de uma parcela da sociedade, pois a população não é passiva. Ela também manipula essas agendas e é óbvio que, como moradores da cidade, não podemos achar que se pode tudo.
Essa questão do ordenamento é subjetiva. Em Ipanema, por exemplo, há um hotel que construiu um deque na areia da praia, que todo mundo acha maravilhoso. Em compensação, todo mundo reclama do camelô que coloca a ‘banquinha’ dele em cima da calçada. A política do choque de ordem é voltada para a fobia que as classes, com um estilo de vida aburguesado, têm em relação ao estilo de vida que não querem para elas.
O desenvolvimento de políticas públicas de habitação, transporte, educação, saúde e saneamento básico minimizaria os problemas urbanos. Essas políticas, quando são desenvolvidas, estão sempre voltadas para a área central da cidade ou zona sul.”
Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro
Sociólogo e coordenador do Observatório de Metrópoles do Instituto de Pesquisas e Planejamento Urbano e Regional (Ippur/UFRJ)
“Ao contrário do que possa parecer a alguns, não somente a parcela mais conservadora da população se beneficia com as medidas adotadas pelas operações de ordenamento da Prefeitura.”
“Qualquer organização limita as expressões mais espontâneas, mas o Carnaval tem que ser organizado. A questão é: qual o grau e como serão aplicadas as medidas de ordenamento? O Carnaval de rua do Rio de Janeiro tem grande proporção e necessidade de organização. É necessário que existam banheiros públicos, por uma questão de conforto e principalmente de higiene. Outra medida importante é que as vias não sejam todas fechadas e haja planejamento especialmente voltado para o transporte público, permitindo a locomoção eficiente das pessoas.
Mais uma questão é a repressão aos ambulantes. Tais vendedores necessitam de regras que limitem sua atuação. Porém, uma operação desse porte, executada no período do Carnaval, muito dificilmente conseguirá impedir que eles atuem. A fiscalização será difícil, não ocorre nem no dia a dia, quanto mais no Carnaval.
Tentativas de fazer um Carnaval de rua mais organizado também estão partindo dos próprios blocos, que, de uns anos para cá, resolveram colocar cordas para evitar a atuação de ambulantes e tentar um maior controle das pessoas. Isso prova que o fato de se estabelecer e fazer cumprir algumas regras à festa não necessariamente tira sua espontaneidade.
Esses projetos de ordenamento urbano precisam de planejamento em longo prazo para que efetivamente funcionem. Mas, mesmo que as ações postas em prática não sejam totalmente acertadas, é importante fazer algo que sinalize para o poder público. E a sociedade tem que participar.
Tal política podia ser legitimada pela sociedade se houvesse um fórum e se o governo promovesse debates para discutir quais medidas desagradam à população e quais ela quer que sejam implantadas, mesmo porque, ao contrário do que possa parecer a alguns, não somente a parcela mais conservadora da população se beneficia com as medidas adotadas pelas operações de ordenamento da Prefeitura, mas a sociedade toda ganha, pois numa cidade sem ordem os mais poderosos detêm o poder.”