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Oficinas Terapêuticas: espaço para manifestar a individualidade

Contrapondo-se ao modelo asilar tradicional de “sequestro” do paciente com transtornos mentais do convívio social, a proposta de reforma psiquiátrica oferece um modelo aberto em que não se procura esconder o “louco”. Em vez disso, procura a reintegração da pessoa ao ambiente social, familiar e, quando possível, profissional. É o que defende Rochelle Gabbay, doutora em psicologia clínica pela PUC e coordenadora da Oficina Palavrear do Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB).

As oficinas ocupacionais não são recentes. Remontam o nascimento da psiquiatria, atribuído a Phillipe Pinel. Se, na época, o chamado trabalho terapêutico se assumia sob a égide do pensamento e do tratamento moral, hoje se busca a abertura para o diálogo e para a possibilidade de manifestação da individualidade de cada paciente. Dentre as disponíveis, a maioria privilegia atividades de trabalho (como a culinária, por exemplo), artísticas e artesanais.

Oferecendo a palavra

O filósofo francês Michael Foucault dedicou parte de sua vida ao estudo da loucura. Ele concluiu que, desde o surgimento do manicômio, o louco deixou de fazer parte da urbe para se ocultar entre as portas fechadas da instituição. A sua voz (quase sempre vista como delirante, irreal e sem valor) se perderia na medição de forças entre ele e o médico.

É justamente contra esse tipo de expectativa que se coloca a Oficina Palavrear, coordenada por Rochelle Gabbay, doutora cuja tese defendida em 2008 intitula-se “Oficina Palavrear: dos rastros da palavra à emergência do sujeito”.

O fio-condutor do projeto, segundo ela, seria a busca pela “palavra, pelo discurso do próprio paciente, bem como a maneira como ele fala de seu sofrimento, das vozes que ouve. Enfim, como ele manifesta sua subjetividade”. E reitera: “As pessoas às vezes se esquecem de que se trata de um indivíduo único”.

A Oficina Palavrear existe há quinze anos, formada por pacientes das enfermarias, do ambulatório e do hospital-dia do IPUB. Funciona todas as quartas-feiras das 10h às 11h. Nela, os 12 participantes semanais escrevem, falam e registram as emoções, sem serem interrompidos ou terem as sensações menosprezadas. Alguns chegam a receber alta após certo tempo.

O próprio nome da oficina surgiu de proposta dos participantes. “O registro é feito pelos pacientes”, explica Gabbay. “E acredito que esse seja um elemento original desse trabalho: não me coube registrar a experiência; os próprios pacientes fizeram-no. Isso não exclui, antes inclui a subjetividade daquele que faz a anotação, que sempre coloca algo de seu”.

Rochelle Gabbay sabe estar lidando com uma área delicada. “Não ignoro que estamos em um campo onde se turvam os limites entre subjetivo e objetivo, entre a realidade e a fantasia. Daí que, nesse terreno movediço, situo-me na realidade da palavra e tomo os relatos como fatos de linguagem, como produções do sujeito a serem lidas, traduzidas e decifradas”, esclarece.

Medicações e Exageros

Segundo Rochelle, estima-se que só nos Estados Unidos cerca de cem mil mortes ocorram todos os anos por conta de exageros de medicação, mesmo aquela receitada por médicos. No Brasil, como demonstrou pesquisa recente do IBGE, os gastos efetivados por todas as famílias, no total, excedem em dez vezes o mesmo tipo de investimento governamental.

Para a psicóloga, trata-se de uma tendência global, provocada por uma sociedade que, em busca do prazer a todo o instante, tornou-se intolerante às dores naturais à própria vida. “Há um evidente reducionismo que assalta a clínica da contemporaneidade”, sustenta. “Acredito que a psicanálise, cuja teoria fundamenta a Oficina Palavrear, tem algo a dizer sobre esse problema”. E prossegue em sua crítica: “Furor curandis é como Freud nomeou o empenho de curar a qualquer preço, a vontade de silenciar o sintoma em lugar de fazê-lo contar a sua verdade”.

Não haveria de se negar a racionalidade das ciências, mas sim de compreender que a faceta humana compreende mais do que dados generalizantes. “O sujeito não é um mero joguete do destino, e sim sujeito da escolha, responsável por seus atos e decisões na vida. Isso empresta toda a dimensão trágica da existência”, defende Gabbay.

Na multidão

Na manhã de quarta-feira (16/12), uma multidão circulava pelo segundo andar de um dos prédios do IPUB. Amontoados em torno da mesa farta de comidas natalinas e frutas, adultos e crianças formavam em ordem uma fila pacífica com pessoas ansiosas pelas guloseimas. Era a festa de Natal do IPUB, um dos movimentos que, juntamente com as diversas oficinas semanais, trabalham em prol da reintegração de pacientes internos ou não do hospital-dia da UFRJ.

A psicóloga e cancioneira responsável por uma das oficinas de música Glória Fairbairn elogia a ideia da festa. “Não dá para identificar quem é ‘louco’ aqui”, diz. “E essa foi a nossa intenção.” De fato, pacientes, parentes e amigos perambulavam pelos corredores sem, à primeira vista, darem mostra de serem ou não internos do Hospital. Quando questionados, porém, os membros da ala psiquiátrica fazem questão de dizer com orgulho sua posição ali. “Eles não têm vergonha de dizer que são pacientes do Hospital. Sentem-se integrados e cheios de autoestima. Quantos outros hospitais podem se gabar de provocar esse tipo de reação?”, enfatiza Glória.

A festa não era a única comemoração do dia: um casamento, celebrado entre dois pacientes da instituição, era aguardado com ansiedade, provando que se feita a integração fica difícil desqualificar o sábio ditado popular: “De médicos e loucos todos temos um pouco.”