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Memória

As engrenagens da vida do mestre Carlos Chagas

Professor João Carlos Pinto Dias emociona auditório repleto ao contar a trajetória do descobridor da Doença de Chagas

Na tarde desta segunda-feira (19/10), durante a Semana Científica do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF/UFRJ), O professor doutor João Carlos Pinto Dias, da Fundação Oswaldo Cruz (Belo Horizonte), ministrou a “VIII Conferência Carlos Chagas Filho – Doença de Chagas: uma análise exploratória da descoberta e seus desafios no século XXI”. Emocionado, mas sem deixar a descontração de lado, não apenas contou a trajetória da centenária descoberta da Doença de Chagas, mas esmiuçou cada engrenagem, seus avanços e retrocessos, da vida de Carlos Chagas que possibilitaram o feito inédito de descrever o ciclo completo da doença.

O palestrante justificou sua emoção por estar na casa do mestre Carlos Chagas Filho, que lhe acolhera com tanto afeto e que teve próxima relação pessoal. Logo no início de sua fala, no auditório G1-022 do IBCCF, o professor alegou que Carlos Chagas, o pai, teria sido um tanto quanto esquizofrênico, devido à sua determinação em ser médico, posteriormente pesquisador e advogado da causa dos enfermos da doença que recebera seu nome.

Segundo o professor João Carlos, a renovação da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, atual Faculdade de Medicina da UFRJ, dirigida por Visconde de Saboya a mando de Dom Pedro II na década de 1880, foi fundamental para a construção da trajetória do clínico Carlos Chagas, dotado de ensinamentos da medicina moderna.

Contou que após concluir o curso em 1902, Carlos Chagas necessitava elaborar tese para poder exercer a medicina. Dirigiu-se ao Instituto Soroterápico Federal (que em 1908 passou a se chamar Instituo Oswaldo Cruz), na fazenda de Manguinhos, levando uma carta de apresentação de seu professor, Miguel Couto, a Oswaldo Cruz, diretor do Instituto. Passou a desnevolver o estudo do ciclo evolutivo da malária na corrente sanguínea.

Em 1907, Chagas foi enviado a pequena cidade mineira de Lassance, com cerca de dois mil habitantes, as margens do Rio São Francisco, para conter a epidemia de malária entre os trabalhadores de uma nova linha de trem da Estrada de Ferro Central do Brasil. Determinado, morou durante dois anos num vagão de trem, montando um pequeno laboratório e um consultório para atendimento dos doentes.

Assim, capturou, classificou e estudou os hábitos dos anofelinos, mosquitos transmissores da doença, e examinou o sangue de animais em busca de parasitas. Chagas identificou no sangue de um sagui uma nova espécie de protozoário, ao qual deu o nome de Trypanosoma minasensis.

Um engenheiro da ferrovia alertou-o para a infestação de um inseto hematófago nas residências rurais, da espécie Triatoma infestans, conhecido como barbeiro, assim chamado porque suga o sangue das pessoas. De acordo com o professor João Carlos, essa foi mais uma engrenagem ou mesmo conjunção astral que favoreceu o sucesso do trabalho do célebre pesquisador.

Em 1908, Chagas enviou barbeiros infectados com o Typanossoma para Oswaldo Cruz no Rio de Janeiro. A análise constatou que nos intestinos dos barbeiros havia outros Trypanosoma minasensis numa fase evoluída. Então retornou ao Rio de Janeiro e concluiu que existiam dois tipos de Trypanosoma e que o minasensis não era patogênico e outro sim. O nomeou como Trypanosoma cruzi em homenagem ao mentor Oswaldo Cruz.

Na volta a Lassance, em 1909, passou a buscar barbeiros nas casas humildes da região, muitas de pau-a-pique, e examinou centenas de seus moradores na tentaiva de encontrar um caso humano infectado pelo parasita. A primeira descoberta se deu em um gato.  Em 23 de abril descobriu o Trypanosoma em uma menina de três anos, Berenice, que apresentava febre e anemia. Estava completo o ciclo da Doença de Chagas: vetor (barbeiro), o agente causal (Trypanosoma cruzi), o reservatório doméstico (gato), a doença nos humanos (o caso de Berenice) e suas complicações.

“Sua maior genialidade foi constatar a Cardiomiopatia Chagássica Crônica”, afirmou o professor João Carlos. Porém, ainda descreveu o ciclo evolutivo do Trypanosoma cruzi, da doença aguda, a mapeou pelo continente americano e lutou por políticas públicas para combater uma doença que afligia aos miseráveis.

Carlos Chagas Filho

Carregando a responsabilidade da herança do pai, Carlos Chagas Filho, ou Chaguinhas como prefere o professor João, teve o mérito de dar continuidade ao trabalho a partir de outra perspectiva. Depois de se formar em 1931 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, especializado em fisiologia, a pedido do pai foi trabalhar no Hospital de Lassance. Segundo João, foi o período em que Chagas Filho mais aprendeu em relação à humanidade, estando em contato direto com os problemas daquela população humilde, confirmando a decisão de dedicar-se ao ensino e à pesquisa científica.

Reconhecido internacionalmente, condecorado como embaixador do Brasil junto à Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura), Chagas Filho fez valer seu prestigiou para pleitear a atenção internacional para o combate à Doença de Chagas. “Dentro do Brasil destacou a necessidade de reformas sociais para abolir a doença”, constatou o palestrante.

Ao final da conferência, o professor João Carlos expôs dados estatísticos que comprovam que transmissão, vetorial e transfusional, da Doença de Chagas foi reduzida drasticamente, com cerca de 200 novos casos ao ano contra 100 mil na década de 1970. Ele ainda anunciou que a doença deve persistir por mais 20 anos no Brasil.

Emocionado e emocionante, João Carlos Pinto Dias terminou sua apresentação recitando a poesia que fez àquele que dá nome ao Instituto de Biofísica da UFRJ:

Carlos Chagas Filho (como vejo e como todos me disseram)

“Foi sempre um visionário
Amou as pessoas, a ciência e o mundo
Soube escutar e estar presente
Nunca desmereceu a sua herança
Nunca fez mal a ninguém
E deu a seu país e a sua gente muito,
muito mais do que se pode imaginar,
sem perder a suavidade e ternura”.