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A terceirização e o abandono dos filhos

 Numa sociedade que preza cada vez mais a velocidade e praticidade, a terceirização dos produtos é  vista como uma boa proposta, em que pessoas exercem a função de outro. O problema está, no entanto, quando as relações humanas são tratadas também dessa forma. O professor e doutor de pediatria José Martins Filho, da Universidade de Campinas, tratou justamente dessa questão em sua palestra, realizada na Maternidade Escola da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no dia 06 de março.

Autor de diversos livros sobre os cuidados com os filhos, inclusive seu mais recente A Criança Terceirizada, José Martins alega que constatara, em sua pesquisa sobre o assunto, uma mudança comportamental dos pais modernos. “Não se trata de uma crítica ou denúncia aos pais. É apenas uma alteração no comportamento dos mesmos, devido aos novos padrões da atualidade”, afirma o palestrante.

Segundo o psicanalista Winnicott, “um bebê não existe sozinho. O bebê é ele e sua mãe”. Esse é, segundo Martins, um pensamento-base para o seu trabalho e fundamental para a criação de todo filho. Só a partir dos dois anos de idade a criança é capaz de entender de maneira saudável, do ponto psíquico, um afastamento de seus pais maior que 12 horas. Na verdade, as pessoas mal sabem o que acontece na rotina de seus filhos. “Elas os amam, mas priorizam outras coisas”, explica o pediatra.

Explicação histórica
O abandono das crianças, não apenas em termos literais, mas também afetivos, é uma prática antiga. A pesquisadora da Universidade de São Paulo, Maria Luiza Marcílio, em seu livro A História Social da Criança Abandonada, comenta que na Grécia e Roma antigas era comum a prática de tirar os recém-nascidos de seus pais para que eles pudessem ser treinados para a guerra, haja vista que, na história da humanidade, os grandes mitos e heróis – Herodes, Édipo e Napoleão – foram crianças abandonadas.

Além das explicações, pode-se também encontrar, desde a antiguidade, os conselhos de sábios quanto ao abandono. Platão dizia que os pais só deveriam ter filhos quando pudessem mantê-los e assumir sua responsabilidade com eles, para que fizessem o mesmo futuramente e toda uma sociedade não fosse comprometida por conta de um erro dos genitores.

– A relação familiar como se vê hoje, na qual laços afetivos são valorizados, é recente na humanidade -, garante José Martins, e continua: “A criança era considerada um adulto de pequeno tamanho.” Hoje os pais têm noção da importância da criação de seus filhos, em termos teóricos, mas a sua rotina não lhes permite agir na prática.

Situação brasileira
Desde os antigos hábitos portugueses, no período de colonização do Brasil, crianças eram deixadas por seus pais em caravelas ou nas cidades brasileiras e nunca mais tornavam a vê-los.  As crianças escravas costumavam portar-se como animais de estimação, que deveriam entreter os seus senhores e comer os restos das comidas durante as refeições.

Hoje, avalia-se que, além dos casos de terceirização dos cuidados dos filhos por parte das famílias mais ricas, há uma grave situação que envolve as crianças de rua. Estima-se que existam, por todo o país, cerca de oito milhões de menores nessa situação. A grande maioria possui família, mas prefere passar seu tempo na rua, ou elas são obrigadas a agir assim.

Pesquisas na Inglaterra garantem que os pais de hoje passam aproximadamente seis minutos de tempo afetivo com seus filhos.  A terceirização não é o grande problema, mas quando essa prática se torna precoce e excessiva. As creches surgiram em 1840 e, 28 anos depois, já havia 85 delas.  A grande questão desse tema na atualidade é que casos de morte ou abandono de bebês voltam a acontecer reincidentemente. A situação econômica e social atual acaba por favorecer uma falta de controle de natalidade, principalmente por parte dos quem têm menos instrução.

As conseqüências, no entanto, só ajudam a contribuir para a continuação do problema. “A ausência da mãe no início da vida de um bebê é o primeiro passo para que ele seja um delinqüente”, afirma o professor. “São criadas pessoas sem noção de vínculos sentimentais e que possuem um forte medo de serem abandonadas de novo. Serão adultos sentindo-se pouco valiosos, incapazes de cuidar de si mesmos e, sobretudo, temerosos.”

A geração mais abandonada, em termos afetuosos, é a atual. O objetivo do pediatra é, justamente, alertar sobre a importância de haver um equilíbrio entre o casal de pais.  Os filhos de hoje são obrigados a viver numa velocidade muito rápida e forçados a ser adolescentes na infância. E a culpa não é só da mãe, mas de toda a sociedade, que precisa rever a sua legislação e seu comportamento. “Cabe à mídia, em vez de apoiar essa terceirização, esclarecer sobre as reais necessidades de cada bebê e a importância da figura materna”, finaliza Martins.

Segundo ele é preciso tratar com seriedade o Princípio IV da Declaração Universal dos Direitos Universais das Crianças: “Salvo em circunstâncias excepcionais, não se separa a criança tenra de idade de sua mãe.”