“Viver é envelhecer, nada mais.” A frase da ensaísta e filósofa Simone de Beauvoir resume perfeitamente o que é o ciclo da vida. Desde pequenos, aprendemos que o ser humano nasce, cresce, envelhece e morre. Entretanto, o significado do envelhecimento e do conjunto de transformações naturais inerentes a esse processo não se materializa da mesma forma para todas as pessoas.
Inspirada pela escritora francesa, Mirian Goldenberg, antropóloga e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, partiu desta perspectiva para investigar como mulheres em torno dos 50 anos de idade encaram a chegada da velhice e das mudanças no corpo e nas relações sociais. Além disso, a pesquisadora buscou compreender o que é mais valioso, nesta fase da vida, para a felicidade e a auto-estima feminina. Os resultados do estudo, que traçou um comparativo entre brasileiras e européias, estão reunidos em Coroas: corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade, livro lançado no último dia 12, no bar Devassa de Ipanema.
Segundo Mirian, o objetivo do livro é mostrar às leitoras que é possível ser feliz aos 50 anos. “Quero transformar a velhice em uma coisa que também tenha aspectos positivos”, ressaltou. Confira na íntegra a entrevista com a autora.
UFRJ: O que a motivou a escrever um livro especificamente sobre a mulher de 50 anos de idade?
Desde que li “A velhice”, de Simone de Beauvoir, aos 30 anos, fiquei muito interessada no tema do envelhecimento. Esse livro foi determinante na minha decisão de estudar a velhice. Meu objetivo com a pesquisa e com o livro Coroas (Editora Record) é mudar essa concepção tão negativa de velhice e mudar a minha própria velhice. Quando li Simone de Beauvoir, fiquei sem perspectiva de envelhecer bem. Mas eu tinha me colocado esse projeto de estudar a velhice quando eu realmente me sentisse velha, porque eu achava que iria antecipar minha velhice se eu começasse a estudar um tema tão depressivo.
Eu passei três meses na Alemanha e Espanha, ano passado, dando palestras, aulas e conferências sobre as minhas pesquisas. Percebi que, lá, envelhecer tem outros significados e todos muito positivos, desde que você tenha saúde e qualidade de vida. Nesses dois países, para as mulheres entre 50 e 60 anos, envelhecer é muito positivo. Assim que cheguei de viagem, decidi antecipar o projeto e comecei imediatamente a trabalhar sobre envelhecimento. O mais interessante foi o total engajamento dos meus alunos no IFCS – são 12 jovens aplicando questionários, fazendo pesquisas. A possibilidade de formar esse grupo para trabalhar sobre esse tema me fascinou. E eu também tive o apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj). Tudo isso me abriu as possibilidades de antecipar o projeto.
UFRJ: Quantas mulheres foram entrevistadas na pesquisa?
Já apliquei 612 questionários, fiz seis grupos de discussão e inúmeras entrevistas. Todo esse material mostra os aspectos positivos do envelhecimento, que são pouco valorizados pelas mulheres. É interessante observar como existem certos momentos na vida das mulheres marcados com o envelhecimento. Os 40 anos estão aparecendo na pesquisa como o grande marco da depressão feminina. A pesquisa também mostra as diferenças de gênero no envelhecimento. Para as mulheres, envelhecer tem um significado completamente diferente do que para os homens. São elas que se preocupam mais com corpo e com relacionamento na velhice.
UFRJ: Durante a pesquisa, a senhora constatou que as brasileiras de 50 anos preocupam-se mais com a aparência e as relações amorosas, enquanto as européias da mesma faixa etária estão mais preocupadas com a satisfação profissional e a qualidade de vida. Por que as culturas do corpo como capital e do capital marital estão tão presentes no Brasil, ao contrário do que se verifica na Europa?
Vi mulheres muito bem resolvidas invejando as mais gordinhas ou feias porque elas tinham um marido, como se fosse um bem, um patrimônio valioso. Daí a minha idéia de criar a categoria capital marital. Esse tipo de valorização do homem eu não vi na Alemanha. Elas não querem se adaptar à vida de um homem, elas querem viver bem, pode ser com um homem, mas também pode ser com outra mulher, com o gato, ou mesmo sozinhas. Isso mostra como os valores mudaram muito pouco, porque mesmo as mulheres ricas e as super bem-resolvidas continuam achando que não ter um marido é um fracasso de vida. Meu esforço é compreender porque o Brasil ainda é tão difícil de explodir esse modelo em que o marido ainda é o principal capital. E, conseqüentemente, o corpo também, porque é através do corpo que a mulher imagina poder conseguir um marido. Ou através do capital relacional, que é ser amiga, ser companheira, ser afetiva, aceitar tudo, qualquer coisa para ter um marido. O que busquei entender foi a situação de mulheres que vivem um descompasso entre um extremo poder objetivo e uma extrema sensação de miséria subjetiva.
UFRJ: Por que lidar com o processo de envelhecimento é mais complexo para elas do que para eles? A influência que a mídia exerce com a veiculação de “padrões de felicidade” para a mulher, relacionados à juventude e ao casamento, bem como à vida sexual ativa, constitui um fator determinante para a formação da auto-estima feminina?
Há muitas mulheres que estão começando a se mutilar aos 50 anos para atender a uma cultura que impõe isso. A cobrança aqui é oposta a da Alemanha. Lá, a questão é porque fazer isso com o próprio corpo. Aqui, há uma obrigação de fazer. As escolhas das mulheres brasileiras são muito mais limitadas do que as escolhas de uma mulher alemã. Ninguém diz que uma alemã é uma fracassada porque ela não casou ou não teve filhos. É a isso que eu chamo de miséria subjetiva. Nós acreditamos nesse lugar em que fomos colocadas culturalmente e não resistimos. Por isso eu gosto de lembrar a história de Leila Diniz, que estudei na minha tese de doutorado e publiquei no livro Toda mulher é meio Leila Diniz (Editora Best Bolso). Leila inventou um novo lugar para ela. Não aceitou o lugar em que a colocaram. Nós aceitamos a invisibilidade que nos colocam.
Em minha observação comparativa destes dois universos, as alemãs me pareceram muito mais confortáveis com o seu envelhecimento do que as brasileiras. Observei mulheres que pareciam muito poderosas na Alemanha, objetivamente (em suas profissões e relações conjugais), mas, também, subjetivamente. No Brasil, tenho observado um abismo enorme entre o poder objetivo das mulheres pesquisadas, o poder real que elas conquistaram em diferentes domínios (sucesso, dinheiro, prestígio, reconhecimento e, até mesmo, a boa forma física) e a miséria subjetiva que aparece em seus discursos (gordura, flacidez, decadência do corpo, insônia, doença, medo, solidão, rejeição, abandono, vazio, falta, invisibilidade e aposentadoria). Observando a aparência das alemãs e das brasileiras, as últimas parecem muito mais jovens e em boa forma do que as primeiras, mas se sentem subjetivamente muito mais velhas e desvalorizadas do que elas. A discrepância entre a realidade objetiva e os sentimentos subjetivos das brasileiras me fez perceber que aqui o envelhecimento é um problema muito maior, o que pode explicar o enorme sacrifício que muitas fazem para parecer mais jovens, por meio do corpo, da roupa e do comportamento. Elas constroem seus discursos enfatizando as faltas que sentem, e não suas conquistas objetivas.
UFRJ: De que forma Coroas: corpo, envelhecimento, casamento e infidelidade pode ajudar as mulheres a entenderem melhor as transformações que vêm com o tempo e, conseqüentemente, a buscarem um modo de vida mais prazeroso para elas mesmas?
Quero transformar a velhice em uma coisa que também tenha aspectos positivos, como vi na Alemanha e na Espanha. Por isso, decidi começar o livro brincando com o envelhecimento, mostrando que há um lado bom em envelhecer. E, de fato, em todas as reuniões que eu vou, quero criar esse grupo de coroas, só que ninguém aceita porque não quer ficar com o rótulo de coroa. Minha proposta de militância política é transformar o rótulo, fazê-lo perder o caráter de estigma e se transforme num rótulo positivo.
Os valores mudaram muito na geração da minha mãe, mas talvez estejam devagar demais. Ainda é estranha essa dependência do homem que as brasileiras têm. E sem dúvida que a mudança de valores pode ajudar a conquistar uma velhice melhor. Primeiro, a mulher vai investir em outros capitais que vão transformar a velhice, como capital cultural, capital científico, ou em outros relacionamentos que não sejam só com o homem. Tudo isso pode alimentar um projeto de uma velhice melhor. Quando a mulher investe só em corpo e em forma física, todos os projetos passam pelo homem e pelas cirurgias plásticas. Aqui, não encontro mulheres que não tenham feito cirurgias plásticas, que é o principal investimento no corpo. As alemãs investem em viagens, em leituras, investem até nos momentos de solidão, em casas gostosas de viver, elas têm muitos outros prazeres. E foram acostumadas a contar com elas mesmas. As mulheres de 50 anos aqui me dizem que, agora, pela primeira vez, são mais livres. As alemãs me dizem: mas elas precisam esperar até os 50 para serem livres?