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Quebrando mitos sobre o cérebro

Que o cérebro humano é uma máquina fantástica ninguém duvida; mas será que os dados que temos hoje sobre um dos principais órgãos do corpo humano são comprovados na prática? Roberto Lent, médico graduado pela UFRJ e especialista em Neurobiologia, viu-se às voltas com esse questionamento logo após lançar o livro Cem bilhões de neurônios. Uma colega pesquisadora que acabara de terminar o pós-doutorado no exterior perguntou a ele acerca da exatidão dos números concernentes ao cérebro e Lent resolveu pesquisar a base empírica dessas informações.

Nesta quinta-feira (16/10), ele proferiu uma palestra na UFRJ sobre o tema “Quantos neurônios nós temos? Quebrando dogmas em neurociência quantitativa”. De fato, a cifra constava nos principais livros de neurociência do mundo, inclusive nas revistas científicas. “Eu não estava sozinho. Senti-me um pouco tranqüilo; mas, olhando de perto a literatura científica não existe evidência experimental de que nós realmente temos 100 bilhões de neurônios”, informou o pesquisador.

Assustado com a possibilidade de ter cometido um erro ao intitular sua obra, Lent, em conjunto com outros estudiosos, resolveu atacar a base do problema: a composição absoluta celular do cérebro de várias espécies, inclusive a humana.

Finda a explicação sobre o surgimento da pergunta-tema da palestra, foi lançada outra: como o cérebro cresceu ao longo da evolução e quais são os componentes responsáveis por esse crescimento volumétrico?

– Várias hipóteses podem ser levantadas quanto a isso –, esclareceu Lent. O cérebro pode se tornar maior devido ao aumento do número de neurônios e celulas gliais – cuja função é sustentar os neurônios e auxiliar seu funcionamento; ao crescimento da dimensão dos neurônios e das células gliais; ao crescimento do espaço extracelular e, finalmente, ao avantajamento da rede vascular que irriga o cérebro.

A questão, portanto, é de escala. Para início de conversa, era necessário um corpus de cérebros de diferentes espécies e tamanhos. Começou-se pelos roedores. Do rato à capivara, os dogmas tradicionais sobre ordem crescente do volume cerebral de acordo com a posição da espécie na escala evolutiva foram confirmados. A variação no grupo dos primatas, ao qual pertencem os seres humanos, foi ainda maior que a encontrada entre os roedores. Além disso, era igualmente imprescindível a análise de cérebros humanos de diferentes idades.

O fundamental, contudo, era a obtenção de um método confiável que possibilitasse a estimativa do número e tamanho das células do órgão em questão. Mais: o método deveria ser flexível o suficiente para ser aplicado em qualquer espécie. A solução foi o procedimento já existente que consistia no fracionamento de partes da massa craniana. Separa-se o cérebro em áreas de interesse e, individualmente, tritura-se essas partes. Os únicos sobreviventes são os núcleos celulares e, para identificá-los, deve-se adicionar proteínas específicas que colorem os núcleos desejados. Logos após, calcula-se o número de neurônios por unidade de volume. A vantagem desse método é a precisão. No antigo – que era basicamente a simples multiplicação da densidade e do volume cerebral – a margem de erro era deveras grande, segundo Lent.

As revelações trazidas por essa nova metodologia são preciosas. Evidenciam que massa, definitivamente, não é documento. O fracionamento provou, por exemplo, que a região do cérebro humano que concentra o maior número de neurônios, ao contrário do que se pensava, é o cerebelo – que permanente invariante em termos de massa nas diferentes espécies. Do mesmo modo, comprovou-se que as regras de escala para o cérebro dos roedores e o dos primatas é diferente.

E os 100 bilhões de neurônios? Eles realmente existem? Quase. Em suas análises, Roberto Lent utilizou apenas cérebros de humanos cujas idades variavam entre 50 e 70 anos. Nesse espaço amostral, o número de neurônios contabilizados foi inferior a 100 bilhões; todavia, o pesquisador admitiu que a idade pode interferir no número de células cerebrais, logo, é mister muito mais pesquisa antes de afirmar qualquer coisa categoricamente, tanto em relação à quantidade exata de células neuronais quanto em relação aos demais dados que contradizem os consolidados dogmas da neurociência.