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Só a antropofagia nos une

O III Simpósio de Literatura Contemporânea da Faculdade de Letras recebeu nesta terça-feira, dia 10 de junho, o crítico, contista, poeta e romancista Silviano Santiago para a palestra de abertura intitulada "O Começo do fim: teoria antropofágica hoje". O escritor criticou a leitura canônica do movimento antropofágico de Oswald de Andrade, baseada no pós-estruturalismo e amplamente difundida e repetida nos meios acadêmicos, pois esta não deixa transparecer o caráter utópico da ideologia oswaldiana que é fundamental no mundo atual onde falta a união.

A antropofagia, ato comum em sociedades indígenas brasileiras pelo qual o homem come outro homem, não é vista por Oswald de Andrade como uma mera forma de nutrição, mas sim como modo de incorporar as qualidades do deglutido. Esta idéia é transportada por Oswald para o processo de formação da cultura brasileira, no qual o colonizado se torna mais forte que o colonizador ao digeri-lo, ao tomar para si o que há de bom no outro. A antropofagia oswaldiana tem por idéia básica engolir o outro, porém, segundo Santiago, “mais importante que isto é a comunhão com o outro depois do jantar”.

Santiago propõe que se busque na teoria antropofágica a utopia, a felicidade e a alegria, condições necessárias para a construção de um mundo melhor e que não se insista em uma tradição hermenêutica de interpretação. “Ano após ano, década após década, essa tradição de interpretação da antropofagia se transformou em uma muralha” disse Santiago completando que tentar escalar esta muralha pela revisitação de conceitos significa fazer grandes caminhadas por detrás do muro das interpretações canônicas e repetir o já escrito e acertado, criando um círculo vicioso.

O escritor chegou a comparar a produção de especialistas brasileiros sobre as vanguardas históricas ao café requentado e ao bolo ressequido. Estes trabalhos seriam apenas um alarde de erudições individuais que ampliaria o repertório de obras que poderiam ser melhor analisadas. A leitura destes especialistas impediria a visão de questões da antropofagia que, segundo Santiago, estão vivas nos trabalhos de arte contemporânea, tais como a reivindicação do calor utópico e o direito à esperança e à alegria. Por isso a escolha do título de sua palestra que faz referência a um trabalho fotográfico de Miroku, artista plástica japonesa.

Santiago defendeu o papel político da literatura e do artista, papel que se manifesta sutilmente e que só se dá através do risco e não da repetição de um concenso. As interpretações canônicas impediriam esta atuação política ao se interessar pela abertura de novas fronteiras geográficas não ocidentais e pelo exercício das inversões ideológicas nos segmentos estratificados pelo poder das culturas hegemônicas neo-colonizadoras e por isso ditas universais. O escritor salienta ainda que hoje, quando as nações ditas de terceiro mundo reclamam o lugar ao sol para suas manifestações culturais e os conflitos bélicos persistem, é impensável que o cidadão da margem dispense as idéias utópicas oswaldianas.

A perfeição da obra de arte e o zelo no processo de criação seriam a melhor resposta ao mundo atual. O trabalho de arte seria a série de experiências pelas quais o artista passaria até apresentar sua obra final. Este trabalho não é desassociado do trabalho crítico do observador, zelo e crítica compõem a obra de arte.

Durante o período áureo da vanguarda brasileira a antropofagia buscava apreender e avaliar a mudança cultural universal e identificar as razões pelas quais os indígenas não conseguiram ter acesso ao capital cultural da obra artística dita universal. Mais importante que a observação da tirania do colonizador europeu, a antropofagia é uma estratégia que visa apreender o valor universal para os que estão sem ele originariamente. “A teoria antropofágica ilumina o mundo pelo reconhecimento pleno das diferenças ao ultrapassar as condições do cotidiano” completou Santiago.

— A antropofagia propõe uma pedagogia a todos os cidadãos — disse o escritor que explicou que esta pedagogia seria a justaposição do conhecimento incompleto do colono ao conhecimento dito universal do colonizador para que se crie um conhecimento exorbitante. Através da antropofagia, o indivíduo acumula o capital e os valores do outro sem desfalcar o seu capital cultural, soma sempre. “O outro é a possibilidade de união neste mundo em que mais e mais se perde a fraternidade universal. A felicidade na comunhão só é possível pela antropofagia” concluiu Santiago que citou um aforisma do Manifesto Antropófago Oswald de Andrade: “Só a antropofagia nos une”.