Uma orquestra sobre duas rodas. Assim, pode-se definir a Cyclophonica, modalidade artístico-desportiva que une música, ciclismo, paisagem sonora e urbanismo. Um tanto inusitado, o projeto foi idealizado pelo oboísta profissional, engenheiro e professor da Escola de Música (EM/UFRJ) Leonardo Fuks como forma de integrar a pesquisa sonora, a construção de instrumentos, a performance musical e o esporte de maneira divertida e educativa. A performance é feita de maneira interativa com os barulhos urbanos e é centrada na improvisação e experimentação sonora. A orquestra conta ainda com o Manifesto Cyclophonico, produzido por Fuks em 1999.
Formada desde 1998, a Cyclophonica conta atualmente com 8 multidisciplinares músicos-ciclistas, são eles: Leo Fuks, Sérgio Magalhães (flautista, saxofonista, artista plástico e funcionário da Fiocruz), Manuela Marinho (cavaquinista, professora de música), Leandro Soares (trompetista, professor da EM), Cosme Silveira (fagotista da Orquestra Sinfônica Nacional), Denise Padilha (atriz e cantora), Sérgio Naidin (percussionista da Orquestra do Teatro Municipal do Rio) e Sheyla Zaguri (professora de piano e percepção da EM).
A Cyclophonica fará uma apresentação, dia 13 de julho, no Festival de Inverno de Petrópolis, e a Coordenadoria de Comunicação da UFRJ conversou com o professor Leonardo Fuks para inteirar melhor a comunidade acadêmica sobre o projeto, entender como funciona essa iniciativa e saber como será a participação no festival.
UFRJ: Como surgiu a idéia para a Cyclophonica?
Aprendi a andar de bicicleta mais ou menos na época em que comecei a estudar Música, aos 6 anos de idade. Paralelamente à música, me formei em Engenharia Mecânica na UFRJ nos anos 80. Toquei em diversas orquestras do Rio de Janeiro, Curitiba e na Suécia, usando freqüentemente a bicicleta para ir e voltar aos ensaios e concertos; não seria surpreendente se pensasse algum dia em tocar sobre uma bicicleta.
E isto aconteceu em Estocolmo, em 1997, quando eu semanalmente percorria mais de 20 km para chegar até a sede da Orquestra de Nacka, onde tocava como primeiro oboísta. Num fim de tarde de muita neve, desejei saber da possibilidade de controlar um instrumento musical em movimento, e quais instrumentos seriam apropriados para este “feito”. Outra dúvida se referia à possibilidade ou não de acelerar a bicicleta e desacelerar a música, por exemplo, de maneira independente.
Após diversas leituras, exercícios e experimentos práticos no estacionamento da universidade, constatei que era, sim, possível tocar uma boa quantidade de instrumentos enquanto pedalava e que era possível atingir completa independência entre os ritmos de pedaladas e de execução musical. Com estas comprovações tão animadoras, o caminho natural seria o de constituir um grupo de músicos ciclistas para desenvolver esta nova atividade, o que fiz após retornar ao Brasil, em 1999, e criar a Cyclophonica Orquestra de Câmara de Bicicletas com diversos amigos músicos profissionais que também tinham o hábito de rodar a cidade sobre duas rodas.
UFRJ: Como funciona o projeto? Qual o seu propósito?
Os princípios básicos do projeto incluem tocar preferencialmente em movimento, experimentando instrumentos tradicionais adaptados e instrumentos novos. Buscamos incluir todo tipo de música – étnica, clássica ou popular – e escolhemos temas bem sintéticos que possam sensibilizar o público, ainda que nos escutem de passagem por alguns segundos apenas. Fazemos arranjos geralmente cíclicos e de fácil memorização, tanto pelo público quanto pelos músicos que tocam tudo de cor. E, quando paramos, costumamos explorar os sons da própria bicicleta, que permite a geração de diversos efeitos interessantes.
Nós não temos, nem poderíamos ter um regente. Portanto, os músicos-ciclistas devem desenvolver uma habilidade de tocar em conjunto de maneira autônoma, sem mesmo olhar nos olhos dos colegas. Isto exige atenção e controle superiores àqueles requeridos em música de câmara e no uso regular da bicicleta. Devo dizer que nunca causamos acidentes com as bicicletas, até porque os pedestres e os outros elementos do trânsito imediatamente notam nossa presença.
Segundo o Código de Trânsito Brasileiro, os carros não são sequer obrigados a possuir buzinas. As bicicletas, no entanto, devem necessariamente incluir uma “campainha”. Esta campainha pode ser entendida como um instrumento “obligatto” em cada bicicleta. Se combinarmos este instrumento obrigatório com o alto grau de liberdade no movimento e na produção sonora, estaremos reconhecendo que qualquer grupo de bicicletas é uma Cyclophonica em potencial.
Um propósito de nosso projeto é o de mostrar que tocar música pode ser simples como andar de bicicleta, mas requer aprendizado, prática, atenção, percepção e, sobretudo, um senso de coletividade. Diversos membros do grupo são professores de instrumento e educadores musicais. A Cyclophonica serve como um museu ambulante de instrumentos e, ao final dos concertos, geralmente temos muitas pessoas de todas as idades interessadas nos nossos instrumentos e acabam testando-os e dando voltas com nossas bicicletas. Isto ajuda a despertar o interesse pelo aprendizado da música.
UFRJ: Qual a relevância de projetos como esse?
A arte necessita de constante renovação e cabe ao músico buscar novas maneiras de tocar, expandir seus repertórios e chegar a um público crescente. Acredito que a Cyclophonica atinja essas metas, pois estabelece uma relação especial entre os músicos e seu público, explora novos instrumentos e técnicas, investe na produção e adaptação de novas obras e consegue atingir um público muito amplo. E consegue isso graças à mobilidade, à excentricidade da idéia e à simpatia que quase todos demonstram em relação à bicicleta e à música.
Outro aspecto relevante é que a Cyclophonica pode servir como um importante aliado na educação do trânsito, pois buscamos agir de maneira ética e em total conformidade com o código de trânsito. Isto é necessário, pois nos relacionamos como os pedestres, motos, bicicletas e toda a sorte de veículos motorizados. As regras e conceitos básicos do ciclismo são desconhecidos pela maioria da população. Entendemos que toda criança deveria ter aulas de ciclismo na escola, com parte do currículo de Educação Física. Isto preveniria inúmeros acidentes e salvaria muitas vidas.
UFRJ: Como será a participação no Festival de Inverno de Petrópolis?
Fomos convidados pelos organizadores do Festival para tocar no último dia, 13 de julho, fazendo um passeio ciclístico-musical ao longo de uma das áreas mais bonitas e tradicionais da cidade, a avenida Koeller. Os ciclistas e músicos da cidade se juntarão a nós e receberão alguns instrumentos simples, como apitos, pequenas percussões e buzinas.
UFRJ: Quais os principais eventos de que a Cyclophonica participa e já participou?
Já participamos da Bienal de Música Contemporânea de 2001 como artistas convidados, tocamos em aniversários de diversas cidades fluminenses e no de São Paulo. Fomos convidados para o grande Festival América do Sul, em Corumbá (2006) e realizamos o primeiro show brasileiro em território boliviano, cidade de Puerto Soarez, logo após a crise entre os dois países em decorrência da nacionalização das refinarias da Petrobrás. Em 2002, realizei uma Cyclophonica na universidade americana de Frostburg, Mariland, com alunos de música, e fomos noticiados em todo o mundo. Em 2004, ministrei uma palestra sobre a Cyclophonica no Japão e realizei uma performance em Nagoya com percussionistas locais. Em 2007, tocamos no Festival Internacional Intercâmbio de Linguagens, no Rio de Janeiro, e realizamos uma turnê pelos três estados do sul. Já realizamos mais de 100 concertos e passeios ciclísticos nestes últimos anos e deveremos participar neste ano de um festival nacional de cinema, em Goiás, onde estrearemos uma obra que interage com dezenas de trechos de filmes que combinem bicicletas e música.
UFRJ: Como são feitos os ensaios da orquestra?
Tentamos realizar ensaios diferenciados, em que possamos desenvolver e escolher a instrumentação, definir os arranjos, ensaiar sem as bicicletas e finalmente ensaiar com as bicicletas. Esta é a parte mais difícil de nosso trabalho, pois não seria suficiente ensaiarmos uma obra estando parados.
UFRJ: Como foi a adaptação dos instrumentos musicais para o uso concomitante ao ciclismo?
Além de professor de acústica musical, desenvolvo instrumentos de sopro profissionais e outros destinados à educação musical. Além disso, ensino a disciplina “Construção de instrumentos musicais” há alguns anos, o que me dá boa experiência para criar novos instrumentos e de adaptar instrumentos convencionais à Cyclophonica. Atualmente estou ocupado em adequar o tradicional órgão de boca chinês, Sheng à bicicleta, mediante o uso de tubos plásticos para o controle e acionamento do instrumento milenar. Até mesmo os celulares dos membros do grupo, que costumavam tocar de forma indesejável durante ensaios e apresentações, foram utilizados musicalmente e acabaram dando origem a outro projeto de minha autoria, a Cellphonica Orquestra de Celulares, com alguns músicos da Cyclophonica.