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No Olho da Rua

 “O Estado mínimo não existe. O que existe é o enfraquecimento de seu braço social”. Essa é a crítica feita por Laura Tavares, pró-reitora de extensão da UFRJ, à situação retratada no livro “No olho da Rua”, lançado nesta terça-feira no Fórum de Ciência e cultura da UFRJ. A obra de Marcelo Antônio da Cunha, médico e ex-diretor da Fazenda Modelo, retrata as mazelas e a vida de diversas pessoas que viviam nesse abrigo para moradores de rua, desde que assumiu o cargo na instituição até a “desconstrução” da mesma, iniciada quando um grupo de profissionais, do qual Marcelo fez parte, percebeu as diversas falhas no acolhimento dessas pessoas, negligenciadas e esquecidas pela sociedade.

Segundo o autor, o livro veio da necessidade de comunicar ao mundo uma experiência extrema tanto de vida profissional quanto como cidadão. “Tornou imprescindível comunicar ao mundo esse universo, como definia uma ex-moradora, que é o outro lado da vida. Conviver com esse outro lado, na Fazenda Modelo, fez com que eu voltasse com a necessidade de contar o que acontece nesses lugares, que história de vida tem cada um desses moradores, o que está por trás dessas pessoas nas calçadas, nas ruas, das quais muitas vezes desviamos os passos, o olhar”, disse Marcelo, para quem a convivência com os moradores foi responsável por uma série de mudanças em seu modo de enxergar a vida e a sociedade. “Senti como se ‘descontruíssem’ em mim uma série de preconceitos e valores, a partir do que hoje vejo de um modo ainda mais especial essas pessoas”, afirma.

– Um dos objetivos, ao retratar a realidade escondida por trás desses abrigos, é levantar uma discussão na sociedade. Essas pessoas indicam que alguma coisa está fora da ordem e nós as afastamos, separamos, escondemos. Elas, porém, continuam nas ruas nos dizendo que precisamos reorganizar a vida. É na verdade um sintoma social que precisa ser tratado, cuidado – analisa o autor, destacando a arte como meio de cura. “As políticas públicas deveriam ter na arte um instrumento de aproximação e transformação, respeitando as singularidades de cada um, pois essas pessoas parecem ser todas artistas, que não se enquadraram na estrutura de trabalho”, sugere Marcelo.

O lançamento do livro contou com a formação de duas mesas redondas, que discutiram o livro segundo as perspectivas “O Estado e a rua” e “A arte e a Rua”, além da exibição de fotografias e de um vídeo sobre a Fazenda Modelo. Para o primeiro debate, no período da manhã, estavam presentes, além do autor e de Laura Tavares, Carlos Augusto de Araújo Jorge, psiquiatra e ex-secretário de Assistência Social do estado; Davi Souza, integrante do projeto Meio-fio, que realizou trabalhos com pessoas de rua para o Médico Sem-Fronteiras, do qual faz parte; Liana Sant’Ana, procuradora do Ministério Público Estadual; e Mirian Guindani, da Escola de Serviço Social da UFRJ.

Carlos Augusto dá início à sua fala lembrando que o desafio do livro é fazer com que a sociedade veja os moradores de rua como indivíduos. “A grande reflexão é sobre as políticas públicas. Vivemos num país onde não existem políticas de Estado, mas de governo. Isso implica muitas vezes em acabar com um trabalho que vinha sendo exitoso pela troca de governantes, sem incorporar boas iniciativas de inclusão às políticas de Estado”, justifica o ex-secretário, responsável pelo convite que levou Marcelo da Cunha à direção da Fazenda Modelo. Carlos Augusto, então, completa o pensamento, parafraseando Cazuza: “Se não houver um verdadeiro cuidado com essas pessoas, acontece o oposto na vida delas. O tempo não passa”, enfatiza.

Liana Sant’Ana, que também trabalhou na Fazenda Modelo, garante que a tarefa ainda não acabou. “Esses ‘depósitos de indesejáveis’ que se tornaram os abrigos, já foram ‘desconstruídos’, no que se refere à remoção das famílias. Mas tem tido uma grande resistência quanto a cumprir com a promessa de assentamento de aproximadamente 100 famílias, que esperam receber suas moradias após a saída da Fazenda Modelo”, lamenta Liana, afirmando que para os moradores de rua, “a vida não tem passado, não tem futuro. É um eterno presente, no qual eles buscam a sobrevivência, à espera da morte”. Davi Souza, por sua vez, reforça essa idéia, ao constatar que “bastam três meses nas ruas para a pessoa sentir que não conseguiria mais sair daquela condição”, afirma o médico.

Para Laura Tavares, há uma falsa divisão entre sociedade e Estado, que é defendida por diversas entidades. “Há uma ideologia neoliberal de responsabilização da vítima. Não há nunca uma atribuição de responsabilidades à instituição, à sociedade que permite a existência dessa situação”, aponta a pró-reitora, que completa: “Não podemos ficar com a falsa idéia societária, que tudo pode ser resolvido na comunidade. Não podemos prescindir do Estado, que tem por dever se responsabilizar por essa população de rua, corrigir as desigualdades sociais. Usufruem do Estado quem menos precisa dele. Precisamos inverter esse papel”, incita a professora, finalizando a primeira mesa de debates.

A Arte e a Rua

Para dar continuidade ao lançamento do Livro No olho da Rua, de Marcello Antônio da Cunha, médico e ex-diretor da Fazenda Modelo, foi realizada uma mesa redonda abordando o tema “A Arte e a Rua”. O evento aconteceu nessa terça-feira, dia 13, de 14h às 17h, no Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ.
A mesa, mediada por Beatriz Resende, diretora do Fórum, contou com a presença de Marcos Prado – cineasta, diretor de Estamira e produtor de Tropa de Elite, Luciano Rocco – diretor da Revista Ocas, produzida e vendida por moradores de rua, Dinah Cesare – atriz e coordenadora de artes da Fazenda Modelo, Marco Terranova – Jornalista e documentarista, e uma ex-moradora da Fazenda Modelo, Dona Memorina. Ainda houve participação de outros moradores, como Barnabé (compositor), que no final do debate se apresentou no violão, e Cloves (artista plástico), que inclusive já expôs seu “carro-coração” na Bienal de São Paulo.
Dinah Cesare abriu a mesa traçando um paralelo entre arte e política, e o caráter experimental de ambas. Ela ainda citou o filósofo Walter Benjamin (no Ensaio intitulado “Experiência e pobreza”), pensando a experiência de montagem, por exemplo, dos cubistas, em que se retira um objeto do seu contexto original e o “re-significa” dentro de uma outra malha.
De acordo com Dinah, o trabalho da Fazendo Modelo se dispôs a investigar os modos possíveis de transmissão de experiências hoje, na contemporaneidade, com oficinas de danças, coral de vozes, trabalho de artes, plantação de hortas, teatro, entre outras, muitas vezes sem muitos recursos materiais. Ela afirma ter encontrado, ao chegar à Fazenda, um lugar quase emblemático da contemporaneidade, porque reunia pessoas com idades, experiências, e territorialidades distintas, convivendo em simultaneidade, em meio a uma quantidade de informações, materiais ou imateriais, muito grande.
A partir disso, a atriz fez uma analogia aos catadores de lixo, que recolhem o que é deixado de lado, e em seguida, fazem uma catalogação de objetos, que passam a fazer parte de outro contexto, um tecido feito de fragmentos que geram um novo sentido, a partir de uma experiência que se dá no presente.
Logo depois, uma das moradoras da Fazenda Modelo, Dona Memorina, deu um discurso emocionado: “Quando o doutor Marcello foi pra Fazenda Modelo, ele chegou no alojamento pra tirar uma foto minha. Eu achava que não estava mais pertencendo a esse mundo. A vida pra mim, o mundo pra mim, já tinha acabado. Quando ele veio tirar a foto, eu comecei a chorar, e coloquei a coberta na frente. De vergonha de estar ali num buraco que achava que não tinha mais saída pra mim".
No entanto, Dona Memorina resolveu participar de um coral, formado na Fazenda. Foi então que começou a ter outras idéias e pensamentos: “Estava me desenterrando de buraco muito fundo”, disse a simpática senhora, emocionada. Segundo ela, todos a tratavam com muito amor, carinho, atenção, o que a fez se transformar em outra pessoa.
O cineasta Marcos Prado deu seqüência ao debate, comparando a situação da Fazenda Modelo e do livro em questão, ao documentário produzido por ele, “Estamira”. O filme trata de uma senhora que sofreu distúrbios mentais, virou moradora de rua e, também por causa do alcoolismo, viu sua vida decaindo, e foi parar não na Fazenda Modelo, mas no Lixão. Marcos comentou que desenvolveu por quatro anos o documentário, trazendo a história da vida dessa senhora e sua força, apesar de tantas tristezas.
Seguindo a mesma linha, o jornalista e documentarista Marco Terranova falou da importância de, através do seu trabalho, dar oportunidade para que essas pessoas tenham alguma voz, e ressaltou quão rico, no aspecto humano, era o ambiente da fazenda.
O fotógrafo André Valentim, que assim como Marco Terranova, teve seu trabalho exposto, concomitantemente ao debate, no Fórum, disse usar a fotografia de uma maneira que pudesse reconhecer a dignidade e o respeito dessas pessoas moradoras de rua, de uma maneira a aproximar uma realidade que nos cerca, sem desviar o olhar.
Também pretendendo trazer à tona a realidade das pessoas que vivem nas ruas, Luciano Rocco, da Revista OCAS, vendida pela população de rua nas ruas da cidade, falou da importância de se criar um espaço de circulação das idéias da população que vive nas ruas. Segundo Luciano, esse é o compromisso político da revista OCAS: funcionar como um canal para estabelecer essa comunicação.
A terapeuta ocupacional e diretora de produção da Fazenda Modelo, Luciana Moro, apesar de não estar presente na mesa, enfatizou: “Não era objetivo formar artistas ou atores, apesar de ter acontecido muito isso, mas sim trazer à tona o potencial de cada um”, finaliza Luciano.