Nesse mês, a editoria “Por uma boa causa” se dedicou ao tema “Doenças transmitidas por animais”. O leitor viu que o cuidado e o controle no contato com os animais pode fazer a diferença entre uma vida saudável e doenças, em alguns casos, capazes de levar até a morte. Encerrando a série de reportagens, o Olhar Vital destaca a leptospirose, doença bastante presente durante a época de chuvas, principalmente nos centros urbanos, por seu principal vetor, o rato.
A princípio trata-se de uma zoonose, isto é, uma doença de animais, que atinge roedores, cães e gado. O homem, na verdade, atua no ciclo como hospedeiro intermediário. Quem explica é o médico clínico e infectologista do serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (DIP/HUCFF), Márcio Figueiredo Fernandes. “No meio urbano, o principal vetor é o rato de esgoto. Devido a condições precárias de saneamento, acaba sendo um vetor importante da doença, porque ele pode eliminar a leptospira (bactéria causadora) na sua urina por toda a vida e pode continuar um portador assintomático da bactéria”, acrescenta o médico.
Esse quadro, contudo, é mais característico em países periféricos, como o Brasil. Em países desenvolvidos, o predomínio da transmissão se dá pela via da exposição ocupacional, por exemplo, pessoas que trabalham com gado ou veterinários. Além desses casos, também ocorrem casos de infecção doméstica, pela via dos cães. “Em boas condições de saneamento, o rato não representa o principal meio de transmissão nesses países”, afirma o médico.
O quadro é bastante diferente no Brasil; aqui a maior parte dos casos se dá via águas contaminadas pela urina do rato, que contêm a leptospira. Além dessa situação a infecção pode ocorrer via ingestão de água contaminada, segundo Fernandes, é a mais rara, já que a maior parte das pessoas ingere água filtrada ou fervida.
Sintomas
Para ter certeza de estar com leptospirose é necessária uma análise profunda do caso. É preciso analisar a bactéria, além de fazer testes sorológicos, à procura do aumento de anticorpos, sinal da presença da bactéria. Entretanto, segundo Márcio Fernandes, não é preciso ter a certeza da infecção para iniciar a terapêutica. “A leptospirose é uma doença potencialmente grave, e muitas vezes, a análise do histórico do paciente aliada aos exames físicos já permite que o médico considere o caso bastante sugestivo”, afirma o infectologista.
A doença é dividida em duas fases: a septicêmica (ou aguda) e a fase imune. A fase septicêmica se caracteriza por um início súbito de febre acompanhada por cefaléia e dores no corpo, conforme explica o médico. Além disso, ainda nessa fase o paciente pode apresentar sinais de insuficiência renal, tosse e um infiltrado pulmonar. “A insuficiência renal costuma ser proeminente na segunda fase, mas em algumas pessoas acontece nesta primeira fase e é marcada pela dilatação de alguns vasos sanguíneos (os capilares), o que acaba gerando um quadro de desidratação”, explica Márcio.
A partir da primeira semana de fase aguda, já se observa uma resposta imunológica do organismo a essas bactérias, há a produção de anticorpos de fase aguda. “Aqui, o paciente sai da fase septicêmica para a chamada fase imune. Há uma varredura à cata dessa bactéria promovida pela imunidade da própria pessoa, mas podem ocorrer reações decorrentes dessa resposta imunológica”, explica o médico. Entre os sintomas dessa possível recaída estão hemorragias, baixa de plaquetas e sangramentos espontâneos. Contudo, segundo o especialista, 90% das pessoas desenvolvem a fase aguda e são tratadas em casa sem maiores problemas.
Devido aos sintomas muito parecidos com outras doenças, a leptospirose é, muitas vezes, confundida com dengue, gripe ou com uma virose qualquer. Para o médico, esse diagnóstico confuso não constitui um grande problema. “Não há grandes problemas na confusão dos sintomas iniciais da leptospirose e da dengue, porque esses quadros virais geralmente são tratados da mesma forma. O médico, contudo, deve estar atento para a história epidemiológica”, explica Márcio Fernandes. “Se o paciente diz que esteve recentemente limpando uma fossa, caixa d’água ou que esteve descalço próximo a locais com água suja, o médico precisa estar atento, pois isso pode ser leptospirose e, embora naquele momento os sintomas possam ser tratados em casa, o quadro pode piorar” complementa o infectologista.
Para o doutor, problemas mais graves podem ocorrer quando a leptospirose se confunde com outras doenças mais urgentes. “A meningite, por exemplo, é uma doença que exige o tratamento urgente com antibiótico pois o paciente corre o risco de morrer”, exemplifica.
Epidemiologia
Em 2006, a Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde divulgou uma tabela que apontava os casos de leptospirose, de 1995 a 2005, por cada região. Segundo o levantamento, o Sudeste apresentava quase 13 mil casos, quase 4 mil a mais do que a segunda colocada, a região Sul.
Para o médico, esses dados apontam a relação entre a urbanização desgovernada e a incidência da infecção. “O grande fator para isso é a concentração de pessoas numa área urbana despreparada para receber esse grande contingente populacional. Na medida que temos um número imenso de pessoas agrupadas num centro urbano, em condições precárias de vida”, opina, “essa combinação favorece a proliferação dos roedores, no meio do lixo. Onde tem casa, onde tem comida, tem rato por perto. Se não existem barreiras ao contato da pessoa com o animal, é inevitável a exposição dessas pessoas ao animal ou à sua excreta”, completa Fernandes.
Além disso, o especialista alerta para um outro problema: a falta de notificação dos casos. “Apesar de a leptospirose ser uma doença de notificação compulsória, ela ainda é subnotificada. Isso já acontece bastante nos centros urbanos e mais ainda nos estados mais periféricos”, comenta o doutor.
Profilaxia e tratamento
A leptospirose pode ser evitada por meio de antibióticos. Segundo Márcio Fernandes, o uso de antibióticos não é indicado em casos de epidemias. Entretanto, para casos individuais, consegue-se sucesso na prevenção. Por exemplo, pessoas que estiveram em contato com águas em área de risco ou veterinários que entram em contato com animais possivelmente infectados, o uso do medicamento de maneira preventiva é indicado.
Já existem vacinas em diversos países do mundo, ainda não comercializadas no Brasil, que evitam a doença. “Essa proteção é temporária e restrita, pois a doença pode se manifestar por meio de aproximadamente 200 sorotipos diferentes da bactéria”, explica o médico. Mas, de qualquer forma, a vacina é utilizada em diversos países com sucesso.
Vacinar o animal não representa uma solução viável para combater a doença. “A vacinação dos animais protege o animal de adoecer, mas não o protege de ser hospedeiro assintomático”, alerta o médico. Com isso, o animal vacinado pode continuar eliminando a bactéria por tempo indeterminado.
Prevenção em atitude de cidadãos
Independente de medidas de vacina ou avanços na área de saúde, o cidadão comum pode contribuir ativamente para a prevenção de surtos da doença. Cuidar do lixo, vedá-lo; usar água tratada, tanto em limpeza, como para consumo, e não jogar lixo em terrenos baldios, evitando a proliferação de roedores, são algumas das recomendações do médico para prevenir a contaminação.
– Nunca vamos conseguir erradicar a leptospirose, porque além da doença não possuir um único hospedeiro, não é uma doença de humanos –, afirma Márcio Fernandes. “Existem doenças, como a poliomielite e a paralisia infantil, erradicadas porque o hospedeiro único era o ser humano. Nesses casos, uma vacinação em massa consegue eliminar a doença”, explica o médico. Neste outro caso, da leptospirose, a prevenção fica por conta das medidas recomendadas, atenuando o efeito da doença nos humanos. “Além disso, é válido exigir dos órgãos competentes um saneamento básico de qualidade” finaliza.