O Núcleo de Estudos de Sexualidade e Gênero (NESEG) encerrou suas atividades de 2006, na semana passada, com a apresentação da pesquisa “Universal e Local nas Expressões da ‘Violência Conjugal’”. Em tal trabalho, a Professora Aparecida Fonseca de Moraes do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) traz conclusões que reafirmam a importância da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM). Isto num momento em que a eficiência e a necessidade de tal instituição são postas em cheque por organizações feministas, pelas delegacias “comuns” e até, de certa forma, pelos próprios profissionais da DEAM, a partir do momento em que estes julgam como inadequadas certas demandas de suas usuárias.
As DEAMs surgiram para serem diferentes das outras delegacias na qualidade do atendimento às mulheres, valorizando a escuta das vítimas e incentivando a capacitação de policiais para superação de preconceitos e visões estigmatizadoras. Segundo a professora, estas delegacias devem ser valorizadas como um instrumento efetivo de combate à violência e como recurso que aumentou o acesso das mulheres à justiça, tendo inclusive repercussão muito significativa em outros países da América Latina.
Contudo, a análise feita com profissionais de uma DEAM, com as técnicas de um Centro Integrado de Atendimento à Mulher (organização feminista) e com grupos de usuárias de ambas as instituições mostrou que essa primeira visão do papel da DEAM deve ser somada a muitas outras tensões.
A começar pela pressão gerada pelo caráter particular da delegacia: segundo a pesquisa, para estes profissionais é complicado imaginar uma instituição policial que está disponibilizada como recurso para um grupo específico. “Eles o tempo todo dizem ‘aqui atendemos todos como iguais, sejam homens, sejam mulheres, nós temos que apurar os fatos; temos que ser imparciais’”.
E esta busca pela imparcialidade viria de alguma forma articulada à idéia de que nem todas as mulheres que procuram a delegacia trazem sofrimentos “legítimos”, existindo assim “vítimas de verdade” – “essas sim justificando a importância de uma delegacia de mulheres, ou seja, uma delegacia voltada para um grupo especifico”. Já as “outras” vítimas trariam demandas confusas e estariam fazendo um uso “inadequado” da instituição policial. Surgindo assim, uma certa hierarquia da credibilidade que classifica as usuárias a partir de um julgamento destas com base em expectativas de comportamentos e papeis sociais de gênero.
Desse modo, essas vítimas que não são classificadas como “de verdade” seriam aquelas que fazem o registro apenas para negociar a separação, as traídas, as mal amadas, as abandonadas pelo marido, as vingativas, aquelas que vão desistir logo da queixa e se reconciliarão com o companheiro.
Mas ao falar da retirada da queixa por parte das denunciantes, Aparecida problematiza o fato de a delegacia julgar o uso que é feito dela por suas usuárias em adequado ou não, ao mostrar que um grupo significativo de mulheres não procura a polícia com o desejo de criminalizar (e assim punir) o companheiro. Mas sim recorreria ao instrumento disponibilizado pelo Estado como meio de recuperar o parceiro mediante a um aconselhamento ou mesmo ameaça de uma autoridade policial.
Recuperação esta que não pode ser entendida apenas como uma reconstrução do relacionamento conjugal. Pois foi encontrado na pesquisa um número considerável de mulheres que haviam rompido com o conjugue ou estavam prestes a fazê-lo. O rompimento do casal, não impedia estas mulheres de dizer que não desejavam ver o ex-companheiro preso, pois o que estava em jogo era a reintegração dos vínculos familiares, a relação destes homens com os filhos e até com outros parentes. Muitas entrevistadas afirmaram que só fizeram a denúncia porque os conflitos estavam afetando os filhos, ou que estes os haviam presenciado. Aqui, a pesquisadora lembra o fato de certas mulheres ainda se verem como principais responsáveis pelo bem estar da família, não desejando que o modelo de homem agressor e mulher submissa seja reproduzido pelos seus filhos. Assim, é criado o paradoxo de o uso que é feito do direito de denunciar dessas mulheres ser condenado pela instituição que deveria auxiliá-las a exercê-lo sem julgamento.
Outra tensão é criada pela visão das organizações feministas em relação às DEAMs. Apesar de o processo de institucionalização destas ter contado principalmente com contribuições das organizações feministas, denunciadoras da violência em todo o país; para tais organizações as delegacias continuam a minimizar a criminalização ou acabam atuando no sentido da descriminalização da violência. A pesquisadora aponta falas de técnicas do Centro Integrado de Atendimento á Mulher (CIAM) que apontam para a não criminalização da violência psicológica sofrida pelas mulheres e também para a tipificação subestimada até mesmo da violência física – como, por exemplo, a classificação de uma tentativa de estrangulamento como lesão corporal por uma DEAM enquanto que para uma técnica do CIAM, esta seria uma tentativa de homicídio.
Sobre a violência psicológica, os profissionais da DEAM entrevistados pela pesquisadora afirmam que nada podem fazer já que falta a materialidade do crime: sobre um caso de uma usuária que se sentia ameaçada pelo companheiro, uma policial afirma que não dá para fazer o registro, pois nesses casos “o juiz devolve rapidinho para a gente, pois não há a materialidade do crime”.
Para as Deams, por sua vez, as organizações feministas politizam excessivamente os instrumentos disponibilizados pelo Estado. Para os policiais das delegacias, elas teriam transformado a DEAM em instituição pública representativa do combate à violência de gêneros no Brasil. E assim. os policiais encarariam esse campo de percepções como um tipo pressão externa que vem de diferentes canais institucionais. Isso porque os policiais estariam muito mais orientados pelo ethos da profissão do que por um horizonte político de direitos compartilhado pelas instituições feministas.