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Memória

O legado de Vargas em debate

O CFCH, em parceria com o Forum e com o CLA, promoveu, durante os dias 23, 24 e 25 de agosto, o seminário O Legado de Vargas – em Debate, a fim de se discutir o que o ex-ditador brasileiro teria deixado de herança para as gerações posteriores, em termos de história, cultura, políticas sociais, trabalho, sindicalismo e populismo, educação, arquitetura e urbanização do Rio de Janeiro, além de memória e imprensa.

Há exatos 50 anos, morre um dos mais importantes – senão o único – estadistas brasileiros, protagonista de uma fase de profundas mudanças no cenário nacional e responsável pelas primeiras páginas da história da industrialização do Brasil. Getúlio Vargas suicidou-se na manhã do dia 24 de agosto de 1954, no seu quarto, no Palácio do Catete, marcando o fim da saga política de uma figura emblemática que usou e abusou de sua autoridade para a construção de um “país-projeto” em que acreditava.
O Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em parceria com o Forum de Ciência e Cultura (FCC) e com o Centro de Letras e Artes (CLA), promoveu, durante os dias 23, 24 e 25 de agosto, o seminário O Legado de Vargas – em Debate, a fim de se discutir o que o ex-ditador brasileiro teria deixado de herança para as gerações posteriores, em termos de história, cultura, políticas sociais, trabalho, sindicalismo e populismo, educação, arquitetura e urbanização do Rio de Janeiro, além de memória e imprensa. Atividades culturais com música, filmes, teatro e exposição de fotos abrilhantaram os dias de debates reconstruindo o sentimento da época e relembrando o momento histórico da Era Vargas.

Abertura

Na abertura do evento, a professora Suely Souza de Almeida, decana do CFCH e uma das responsáveis pela iniciativa do seminário, ressaltou a importância dos debates para examinar as ambigüidades e entender o que Vargas deixou de legado, pois o país era radicalmente diferente antes da década de 30 e se tornou mais ainda, depois de 54. Para Raymundo de Oliveira, presidente da FUJB, Getúlio Vargas, com a tônica de defesa econômica e soberania nacional, acabou por viabilizar projetos que até hoje impulsionam o Brasil, como a criação da Companhia Siderúrgica Nacional, da Vale do Rio Doce, do Banco Nacional de Desenvolvimento – BNDE, atual BNDES – e da Petrobrás. Também participaram da mesa de abertura o reitor da UFRJ, Aloísio Teixeira e o coordenador do FCC, Carlos Antônio Kalil Tannus.

História

Devido aos resquícios do patriarcalismo da República Velha, a sociedade transferiu a imagem do pai para o Estadista, o transformando em “pai dos pobres”, além disso, como apontou Francisco Carlos Teixeira, professor de história moderna e contemporânea da UFRJ, Getúlio Vargas pode ser considerado o exemplo mais completo da obra “O Príncipe”, de Maquiavel. Edgar de Decca, professor e historiador da Unicamp, lembrou o fato de Vargas ter sido rejeitado em espaços políticos culturais, como em São Paulo. As discussões a respeito da questão histórica contaram com a participação também de José Murilo de Carvalho e Marcelo Cerqueira, mediados por Carlos Nelson Coutinho, atual diretor da Editora da UFRJ.

Cultura

Para falar sobre os movimentos culturais na Era Vargas, foram convidados os professores Santuza Cambraia Naves, Godofredo de Oliveira Neto, Ângela Âncora da Luz e o jornalista Sérgio Cabral, com mediação de Alcmeno Bastos. Getúlio Vargas, o “ditador sorridente”, segundo Santuza Naves, procurou unir o novo, o tradicional, o desenvolvimento e o nacional, identificando-se com artistas da época, como Villa-Lobos e Carmem Miranda. O debate foi em torno do controle, feito por Getúlio Vargas, às manifestações populares em contraposição à arte erudita. Para tanto, o ministro da Educação de seu governo, Gustavo Capanema, bastante flexível, ficou responsável pela “cultura erudita”, enquanto o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), sob comando direto de Vargas, pela “cultura de massa”. “Não houve qualquer restrição, dirigismo ou impedimento ao aparecimento da arte moderna; a total liberdade estética pôde ser sentida na época de Vargas, em oposição ao que se viu na produção popular, como as marchas carnavalescas”, explica Ângela Âncora da Luz. O segundo governo, período de 1951 a 1954, também representou a continuidade dessa abertura: “O único controle na época de Vargas foi o ideológico e não o estético”, finaliza Ângela.

Getúlio Vargas é o personagem mais cantado na música popular brasileira”, diz Sérgio Cabral, acrescentando ainda que essa época, em que chegaram ao país as gravadoras internacionais, fora a melhor para a música popular brasileira. Ainda no final da década de 20, houve o aperfeiçoamento da gravação mecânica para a elétrica e o rádio passou a ser mais difundido – desenvolvendo técnicas baseadas nas rádios norte-americanas e inglesas. No entanto, diferente do que se sucedeu com as artes plásticas, não houve independência total com a música popular, principalmente, após a criação do DIP, em 1939 – que proibia, por exemplo, letras de música que exaltassem a malandragem, como o famoso Bonde de São Januário.

Políticas Sociais

A professora Maria Lúcia Werneck, do Instituto de Economia da UFRJ, participou – juntamente com Mariléa Porfírio, Wanderley Guilherme dos Santos e José Carvalho de Noronha – da discussão a respeito do que Getúlio Vargas deixara para a posteridade no campo das políticas sociais. Ela alegou ser “um desafio instigante, mas, ao mesmo tempo, aterrorizador falar de Vargas, no dia 24 de agosto” – reportando-se à data de sua morte, em 24 de agosto de 1954. Para a professora, o ex-presidente foi importante em seu momento, entretanto, nos dias de hoje, não mais. “O país mudou”, declarou. Getúlio Vargas foi responsável pela criação do Ministério do Trabalho, em 1931, além do programa de Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Apesar de indagar se o “legado de Vargas” teria se esgotado, Maria Lúcia disse ser imprescindível levar em conta a característica sistemática da política de Vargas: “a política social não vem sendo tratada como sistema. Hoje, está fragmentada pelos diversos ministérios. As políticas assistenciais também têm se distanciado da idéia inicial, o que não acaba sendo favorável para a maioria”. Mariléa Porfírio explicou que, a partir da década de 30, o Estado passou a ser mediador, passou a financiar as instituições religiosas, e outras, que se caracterizavam pela filantropia e assistência social.

Trabalho, sindicalismo e populismo

Vargas representou diversas linhas controversas: foi um grande negociador, capaz de construir consensos, mas também intransigente e autoritário. Foi maquiavélico, um verdadeiro especialista na arte de dissimular e, ao mesmo tempo, um líder carismático, sensível politicamente; líder progressista e modernista e, também, um político conservador. Essas várias personas do ex-ditador foram lembradas no decorrer do debate sobre Trabalho, Sindicalismo e Populismo, realizado entre as professoras Eliana Pessanha, Eli Diniz e Maria Helena Capelato. “O legado trabalhista de Getúlio Vargas é muito forte; ainda mostra sua força hoje. Ele está organicamente enraizado nas lutas políticas e sociais, sintetizou e representa um patamar mínimo de condições que a classe trabalhadora não quer abrir mão”, declarou Eliana Pessanha.

Educação

A educação, no primeiro governo de Vargas, foi um projeto preferencial, respondendo aos anseios da sociedade nas décadas de 10 e 20, do século passado. Em seu segundo governo ele deu um tratamento de Estado para a educação. Os integrantes da mesa, composta pelos professores Luiz Antônio Cunha, Lisbânia Xavier, Helena Bomeny, Carlos Roberto Jamil Cury e mediada por Franklin Trein (diretor do IFCS/UFRJ), discutiram os pontos de vista do Estado, do setor empresarial e da igreja sobre a nacionalização do ensino nos dois governos de Vargas. O professor do CFCH, Luiz Antônio Cunha, levantou a questão sobre a criação do Senai como centro profissionalizante, que foi imposta por Vargas. Posteriormente, devido a ambigüidade da instituição, os empresários reescreveram a história recebendo os créditos pela criação, pois o Senai é de criação pública, mas sendo privado o financiamento e gestão. O ensino religioso nas escolas públicas teve início na Era Vargas, pois a Igreja, no intuito de proclamar o Brasil um país católico, ajudou na mediação da renúncia de Washington Luís e assim recebeu o apoio de Getúlio. A nacionalização, a partir da educação, se deu sobre um modelo de formação cívica nas escolas, colégios de línguas estrangeiras foram fechados, mais difundidos no sul do país devido aos imigrantes. A criação do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) foi uma política de estratégia militar visando a tecnologia nuclear.

Rio, a capital da República

A cidade do Rio de Janeiro, entre os anos 37 e 45, assistiu a um intenso crescimento industrial. No entanto, apesar do desenvolvimento econômico, a geração de riquezas concentrou-se na elite carioca, enquanto a maioria da população ficou à margem, contribuindo para o acréscimo no número de favelas. Nesta época, Getúlio iniciou as primeiras políticas de habitação, através de projetos de conjuntos habitacionais. Outra lembrança bastante marcante da década de 30, foi a significativa presença dos automóveis nas ruas – que levou à criação da Avenida Presidente Vargas, no centro do Rio. Tais mudanças fizeram com que se estabelecesse um paradoxo acerca das políticas de redefinição dos espaços urbanos: ao mesmo tempo em que Vargas buscava formas de se delimitar a identidade nacional, ele destruía o patrimônio cultural e arquitetônico para abrir novas áreas urbanas. Foram discutidos ainda, pela mesa composta pelos professores Francisco Salvador Veríssimo, Vânia Cury, William Seba Mallmann Bittar e Pablo Benetti (diretor da FAU/UFRJ), alguns projetos arquivados e outros que chegaram à execução de obras para urbanização do Rio, como a construção da Cidade Universitária que, hoje, abriga diversos centros de ensino da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Memória e imprensa

Pudemos assistir também a uma série de exposições que nos remeteram ao surgimento da imprensa brasileira, histórias dos principais folhetins e revistas da época, além de acontecimentos pessoais abordados pelos professores José Amaral Argolo (diretor da ECO/UFRJ), Eurico de Lima Figueiredo, Jessé Jane e Mônica Rodrigues, na última mesa de debates do seminário, realizada no dia 25 de agosto. Ao analisar a imprensa da época, destacou-se o seu papel decisivo na promoção e combate – na figura do jornalista Carlos Lacerda – à imagem do ditador populista. “Getúlio é um produto de sua época. A sua época é de autoritarismos”, explica Argolo. Mônica Rodrigues finaliza sua exposição apontando que “o legado que Getúlio Vargas nos deixa é representado pela necessidade de que haja uma análise mais minuciosa sobre o papel do jornalista e do jornalismo em si”, exemplificando com a tentativa do governo Lula de criar do Conselho de Jornalismo.

Encerramento

A cerimônia de encerramento ficou por conta do presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento Social (BNDES), Carlos Lessa, que procurou destacar a importância deste tipo de iniciativa.

Atividades Culturais

Entre as séries de palestras e debates, houve a exibição dos filmes Memórias do Cárcere (1983), de Nelson Pereira dos Santos, e Olga (2004), de Jayme Monjardim, além da apresentação da peça Gegê-zamento, direção de José Henrique Moreira, e do show Getúlio cai no samba, direção de Eduardo Galloti e Alfredo Del Penho.

O filme Olga, ainda em cartaz, contou com um público numeroso, quando exibido no Espaço Unibanco, em Botafogo, que misturou universitários, professores e estudantes dos níveis médio e fundamental. Um debate entre professores, logo após a exibição, fechou a atividade. A filha de Luis Carlos Prestes e Olga Benário, Anita Leocádia Prestes, professora de história do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS), tem a história de sua família contada no filme de Monjardim, atualmente recorde de bilheteria nacional. Após ser deportada para a Alemanha pelo governo de Vargas, a judia Olga, grávida de sete meses, foi para a prisão feminina de Barnimstrasse, onde Anita nasceu e foi afastada de sua mãe após 14 meses. A avó paterna, Leocádia Prestes, após incessante campanha internacional, conseguiu a guarda da neta, e Olga morreu na câmara de gás de um campo de concentração.

A exemplo de seus pais, Anita também militou no Partido Comunista e, na década de 60, engajou-se na luta contra a ditadura. Foi perseguida pelo regime militar e condenada a mais de quatro anos de reclusão. Exilou-se na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

A Comissão de Anistia do Ministério da Justiça deferiu o pedido de anistia política, de acordo com a lei de 2002, pela contagem de tempo de serviço e reparação econômica da professora Anita Leocádia Prestes que, em 1972, foi indiciada por suas militâncias políticas e condenada à pena de quatro anos e seis meses. Por unanimidade, os conselheiros da 1ª Câmara da Comissão de Anistia decidiram conceder à Anita o valor máximo que pode ser pago a trabalhadores de empresas privadas e servidores públicos civis que tiveram seus direitos afetados na ditadura militar.

A indenização foi no valor de R$ 100 mil e será doada pela professora ao Instituto do Câncer. Segundo ela, o pedido foi feito para que a justiça lhe garantisse a contagem de tempo de serviço, já que ficou exilada e não pode lecionar, o que acabou atrasando seu processo de aposentadoria, que sairá daqui a dois anos.

Anita acha que acabou sendo privilegiada, pois existem pessoas na fila há mais tempo e que não tiveram seus problemas resolvidos — “A lei contempla situações variadas. Eu discordo com a concessão das indenizações, que estão levando às injustiças, já que uns ganham muito e outros não. Esse dinheiro poderia ser mais bem investido, já que existem tantas pessoas na miséria”.